Por Sílvio Bembem
Na obra clássica do sociólogo Florestan Fernandes A integração do negro na sociedade de classes, escrito em 1964 como tese para o concurso de professor de sociologia da USP, o autor aponta os entraves para integração dos negros no nascente Estado burguês que estava se formando com a lei Áurea, do dia 13 de maio de 1888, com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889 e com a primeira constituição republicana do Brasil, de 1891.
Logo no primeiro capítulo, lemos o seguinte: “A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalha livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos (dos ex-escravos), sem que o Estado, e a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida do trabalho”.
No trecho acima, fica evidente a marginalização em que foram deixados os ex-escravos. Tanto o Estado como a Igreja, segundo Fernandes, teriam sido os responsáveis por tal situação. E continua: “o liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva”. Essa citação explicita muito bem a situação de pobreza dos negros no Brasil hoje.
Quando se passa a analisar a condição em que ocorreu o processo de abolição, observa-se que a mão-de-obra beneficiada com o trabalho assalariado da época, fruto do fim da escravidão formal dos negros e do advento do trabalho livre, foram os imigrantes brancos europeus. Aqui começou a nascer a tão propalada classe média do país, que recebeu do Estado pós-abolição, os incentivos, a condição assalariada, a escola, a terra e outras formas de incentivo do Estado burguês nascente, o que não deixou de ser uma ação afirmativa estatal para os imigrantes europeus virem para o Brasil, com o objetivo de desenvolver a nação. Já o negro liberto, “convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes”, é deixado à própria sorte.
Segundo Florestan, “à população liberta não foi dado nenhum benefício, nenhum incentivo por parte do Estado ou da Igreja detentores do poder político e econômico da época”. Os ex-escravos sequer tiveram qualquer forma de indenização pela exploração da sua força de trabalho. Daí ser correta a defesa por parte do movimento negro da adoção de políticas de ações afirmativas, como as cotas, no sentido do Estado brasileiro fazer a devida reparação, garantindo oportunidades a essa população vítima dessa crueldade, ou melhor, do genocídio que fora a escravidão. Portanto, lutar pela regularização dos territórios das comunidades remanescentes de quilombos, já garantida na Constituição Federal de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT –, no seu artigo 68, e no decreto n.º 4487/03, é um avanço na conquista do direito de reparação.
Florestan Fernandes, com esta obra de mais de mil páginas, passou a ser chamado por muitos pensadores como o sociólogo dos negros ou da escravidão. Este livro é uma dessas leituras essenciais e obrigatórias para todo estudioso da questão racial no Brasil cuja função não é outra senão a de apreender a formação social brasileira, como assinala o também sociólogo Antônio Sérgio Guimarães.
Com isso, faz-se necessário uma breve comparação com os dias atuais. Passados os 123 anos da abolição formal dos escravos e 47 anos dessa obra clássica da sociologia brasileira, na qual o legado do povo negro na sociedade de classes é brilhantemente descrita por Florestan Fernandes, cabe a pergunta: e a integração dos negros na sociedade política? O autor não deixa de identificar a participação política dos negros já naquele período, que teria sido intensa e decisiva, principalmente a partir da fase em que a luta contra a escravidão assumiu feição especificamente abolicionista.
Trazendo o velho Marx, quando no século XIX analisou a sociedade capitalista, cindida pelo conflito capital x trabalho, o debate central eram as relações de oposição entre burguesia e proletariado, o que perdura até hoje. Só que, no momento atual, outras novas categorias de análise se apresentam fortemente para entender as contradições da sociedade contemporânea burguesa/capitalista, que se concretizam em novos movimentos sociais: étnico-racial, gênero, orientação sexual, cultural e meio ambiente. Nunca antes as lutas desses novos movimentos sociais foram tão evidentes, mostrando o quanto questões como raça, gênero etc., somadas às desigualdades de classe, são também causa da assimetria da sociedade capitalista, portanto, estão estritamente relacionadas.
Nesse sentido, a tarefa do movimento negro, de militantes anti-racistas, ativistas dos direitos humanos, é a de compreender a importância da participação política como ponto estratégico para o embate do presente, na sociedade política e na sociedade civil, como nos ensina Antônio Gramsci: “no Estado burguês é fundamental que os trabalhadores participem de forma ativa e orgânica da sociedade civil e da sociedade política”. Entender, portanto, que o que está em jogo é disputa de hegemonia, logo disputa do poder.
Para o cientista social Clóvis Moura (Rebeliões da Senzala, 1959), que revê a história da escravidão e do papel do negro/escravo na dinâmica escravista brasileira, há a necessidade do debate da questão racial relacionado com o da política. Até Moura, o debate central resumia-se a choques culturais. É ele quem apresentar nos seus estudos o enfoque mais político para a luta racial no Brasil.
Nota-se, assim, uma grande invisibilidade dos negros nos poderes constituídos da República. Veja o que diz Milton Santos, dirigindo-se ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo Ser negro no Brasil, publicado em 11/03/2001, na Folha de São Paulo: “O próprio presidente da República considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira... A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política consequente. Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter o direito de uma participação plena na vida na cional”. O que não é muito diferente no governo da presidente Dilma, apesar do bom discurso. Fica-se a imaginar o que não estarão passando os nossos negros, homens, mulheres, crianças, jovens, neste país distorcido, racista e desigual neste momento!
Temos que nos convencer de que a democracia brasileira só vai se realizar se tiver uma representação de todos os setores da sociedade na estrutura do poder político, econômico e na imprensa, como bem aponta o antropólogo Kabengele Munanga.
Portanto, é necessário entender a sociedade em que imperam o racismo e as desigualdades cindidas em classes. E disputar econômica e politicamente de forma organizada e consciente a sociedade do século XXI é tarefa que deve ser encarada como o grande desafio do movimento negro. Pois, para integrar os negros na sociedade de classe há que se lutar pela sua integração na sociedade política.
Com este artigo neste dia 20 de novembro de 2011, Dia Nacional da Consciência e o Ano Internacional dos Afrodescendentes, declarado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, quero homenagear in memoriam os nossos grandes líderes contemporâneos: Magno Cruz, o quilombola Fláviano Pinto, Ivan Quilombola e Abdias Nascimento.
Axé povo negro!
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