Freitas Diniz desmente Sarney sobre Lei de Terras, desde 1991... |
Uma matéria publicada na revista Veja (29/06/11) sob o título“Bem vindo ao Sarneyquistão”, apontou “o latifúndio improdutivo”, associado "a corrupção endêmica", como os principais motivos do atraso maranhense. O senador José Sarney - citado corretamente como maior responsável pelos problemas - fez uma carta à revista onde agrediu o historiador e professor da UFMA, Wagner Cabral da Costa (entrevistado pelaVeja) e mentiu ao dizer que “as leis que permitiram a venda de terras devolutas do estado” não são dele.
Contrariando todas as evidências, Sarney disse que não tem “nenhuma responsabilidade por essa política fundiária que considera ter sido danosa ao Maranhão”. Para completar, acusou covardemente os ex-governadores Antônio Dino e Pedro Neiva (já falecidos), afirmando que eles, somente eles, “abriram as portas (do Maranhão) a latifúndio, grilagem e expulsão de posseiros e pequenos proprietários rurais”.
O historiador Wagner Cabral passou a informação correta para a revista. Foi José Sarney que, premeditadamente, ao fazer e assinar a Lei 2979, de julho de 1969, tumultuou o processo de regularização fundiária no Maranhão, atraindo para o Estado grileiros/latifundiários, aumentando de maneira exorbitante a concentração de terras, a tensão social, o êxodo rural e os assassinatos de lavradores.
Para colaborar com este debate o jornal Vias de Fato disponibiliza abaixo um artigo publicado há 20 anos (14 de outubro de 1991), escrito por Domingos Freitas Diniz e nunca (nunca!) contestado por quem quer que seja. Intitulado “Terra, Justiça e Reforma Agrária” é um texto que vale a pena ler, guardar e divulgar
TERRA, JUSTIÇA E REFORMA AGRÁRIA
Freitas Diniz(*)
Texto publicado originalmente no Jornal O Imparcial, como informe publicitário, em 14 de outubro de 1991.
Texto publicado originalmente no Jornal O Imparcial, como informe publicitário, em 14 de outubro de 1991.
A imprensa noticia que o papa João Paulo II, na homilia que fará em São Luís por ocasião da celebração da missa no Aterro do Bacanga, no dia 14, abordará o tema Terra, Justiça e Reforma Agrária, proposto pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), finalizando uma “ampla e responsável” discussão dos conflitos fundiários nesta região.
Procurando contribuir para o debate referido, relatarei fatos que, na nossa opinião, são as causas de quase todos os conflitos agrários no Maranhão. Tudo tem início a partir da década de 70, quando a grilagem, de um lado, e, do outro, a Lei Sarney sobre as terras de domínio do Estado – Lei 2979, de julho de 1969, revogada em maio de 1986 pela Lei 4225 – concentraram a propriedade rural, tumultuando o processo de regularização fundiária.
A grilagem cartorial incorporou ao patrimônio de cínicos grileiros mais de quatro milhões de hectares de terras públicas. Somente o grilo da famigerada e fictícia "Fazenda Pindaré", beirava os dois milhões de hectares.
A Lei 2979 (Lei Sarney), já no tempo do governador Pedro Neiva, permitiu a alienação de um milhão de hectares, surgindo, como conseqüência, grandes latifúndios. O mais notório, naquela época, foi o do grupo Matos Leão, do Paraná, cujas empresas proprietárias do latifúndio tinham como um dos membros de seus Conselhos Fiscais o senador da Arena José Sarney. É mister salientar que o Sr. Pedro Neiva fora "eleito" indiretamente pela Assembléia Legislativa, por imposição do presidente general Emílio Médici, atendendo indicação do Sr. José Sarney, na qualidade de preposto da "Revolução” (golpe) de 1964 no Maranhão. Aliás, o Sr. José Sarney não escondia, na época, essa qualidade de preposto do regime castrense, tanto que em nota oficial, quando Governador, referia-se explicitamente à "Revolução que eu apoiei e por ela fui apoiado”.
O governador Pedro Neiva, tutelado no começo de sua administração pelo senador Sarney, não só aplicava, inconstitucional e abusivamente, a Lei Sarney, como implantava um projeto de colonização a cargo da Cia. Maranhense de Colonização (Comarco), a quem o Estado incorporou 2.100.000 hectares de terras, inconstitucionalmente, sem prévia e indispensável autorização do Senado.
Questionado pela Justiça, o governador Pedro Neiva procurou sanar o erro, embora tardiamente, no final de 1973, encaminhando requerimento ao Senado. Este concedeu a autorização requerida, nos termos do parecer do relator da Comissão de Constituição e Justiça, senador José Sarney, contra o voto do senador Nelson Carneiro, que criticava a distorção no parecer, demonstrando que a prerrogativa constitucional do Senado era a de aprovar previamente a alienação de terras públicas acima de 3 mil hectares, e não a de referendá-la.
A resolução 60/73 do Senado aprovou a incorporação de 2.100.000 hectares de terras à Comarco e fixou o limite de 25 mi1 hectares para a venda de glebas para projetos agropecuários. Entretanto, a diretoria da Comarco, desobedecendo as leis que instituíram a companhia e a resolução do Senado, vendeu mais de 2.100.000 hectares, extrapolando, também, o limite de 25 mil hectares para projetos agropecuários. O Grupo Cacique, do Paraná, liderado pelo Sr. Horácio Coimbra, comprou, por exemplo, mais de 80 mil hectares, divididos por quatro empresas.
Estava claro, naqueles tempos, que o senador José Sarney, como idealizador e executor, por intermédio do governador Pedro Neiva, da política fundiária do Maranhão, agia em sintonia com o governo federal do ditador de plantão, general Emílio Garrastazu Médici – período negro do regime militar, com repressão, cassação, torturas, exílio e banimento de brasileiros.
Conquanto a lei federal 4504 de 30.11.64 – Estatuto da Terra – do governo do presidente Marechal Castello Branco, ainda em vigor, representasse uma tentativa válida para a realização de uma reforma agrária no Brasil, porque criava algumas condições necessárias, embora não suficientes, à reformulação do sistema de posse e uso da terra – conquanto isso ela trazia, premeditadamente, no seu bojo, a possibilidade de dois processos distintos: um de reforma agrária propriamente dita e outro de colonização. A administração do Estado optou pela colonização, que, aliada a uma política de incentivos fiscais regionais corrupta e dirigida para o latifúndio – executada pela SUDAM e SUDENE – elevaram os índices de concentração fundiária no Maranhão. Conforme o IBGE, em 1975, já éramos os recordistas desse parâmetro no país.
O senador José Sarney, não satisfeito com o bastão de mentor da política de terras maranhenses, passa a nela intervir direta e pessoalmente, quando, em dezembro de 1975, adquire uma posse de terras devolutas denominada Maguary, no município de Santa Luzia, com mais de 4 mil hectares. Os verdadeiros posseiros que lá moravam desde 1953 e viviam do cultivo da terra reagiram prontamente, entrando em conflito, com toda razão, com o senador José Sarney. Este pede ao ex-Governador Nunes Freire medidas contra os posseiros para "evitar as turbações de posse que se vêm verificando napropriedade (grifo nosso) Maguari e em toda a área, onde grileiros de outros estados e agitadores, com objetivos inconfessáveis, vêm cortando arame, com sérios prejuízos materiais e instabilidade para toda a área". Nunes Freire não reprime e não expulsa os posseiros, e manda discriminar as terras da Maguari, irritando Sarney que, não se conformando, exacerba os conflitos ao máximo. O fato ganha, assim, as manchetes dos jornais locais e nacionais.
A repercussão é de tal magnitude que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Fundiário da Câmara dos Deputados, em seu relatório, reserva o seguinte texto para o Senador José Sarney: "Será lícito a um Homem público, ex-Governador de um Estado, advogado, adquirir as benfeitorias existentes em um imóvel que ele próprio reconhece irregular, pela ilegalidade do aforamento, fazendo vultosos investimentos na área de terras que formam o mencionado imóvel? Entendemos, finalmente, que esta transação, além de ilegal e desonesta, é imoral". E contra quem? Contra o pequeno, o humilde, o posseiro.
Solicita, assim, do seu amigo Armando Falcão, Ministro da Justiça do Presidente Ernesto Geisel – quarto general do regime militar, excluídos os três da junta de 1969 –, a força policial federal, sob argumento de que "existe forte trabalho de subversão, que era feito pelos padres e agora pela Fase, e que coloca em risco a tranqüilidade e a ordem pública, e mostra a que ponto a política maranhense é capaz". Passando por cima da autoridade do governador Nunes Freire, numa intervenção franca, o Ministro da Justiça dá ordens expressas à Polícia Federal para atuar diretamente na gleba Maguari, promovendo inquéritos e violências. Segundo o ex-governador Nunes Freire, a ação direta e pessoal do Senador Sarney sobre terras do Maranhão não se restringe ao escandaloso caso Maguari, tanto que declarou, e não foi contestado, à revista Senhor 281 (5/8/1986), que Sarney negociava com terras, em São Paulo.
Suas palavras: "Ele tinha um escritório em São Paulo. As terras eram vendidas a 40, 50 cruzeiros o hectare, mas por fora era feito outro negócio". A concentração fundiária acima mencionada gera, na segunda metade da década de 70, os primeiros conflitos sérios. O governador Nunes Freire, de então, ao invés de anular os títulos ilegais concedidos pelo Departamento de Desenvolvimento Agrário (DDA) e pela Comarco, mediante meros requerimentos e sem licitação, parte, equivocadamente, para a discriminação judicial, legalizando a situação de fato existente, isto porque a nova lei de discriminação de terras devolutas deixará, de fato, fora do processo judicial os milhares de legítimos interessados – os posseiros. Explico. Pela lei antiga – revogada – as citações dos interessados no processo de discriminação judicial eram feitas pessoalmente; e pela nova, por edital, publicado na imprensa e com prazo exíguo de 30 (trinta) dias. Como posseiro não lê jornal e muito menos Diário Oficial, por vários motivos de todos conhecidos, somente os detentores de títulos de terras adquiridas ilegalmente e os grileiros se habilitaram ao processo, ambos em perfeita harmonia e simbiose.
A partir dessa consolidação de títulos, os conflitos de terras com mortes e demais conseqüências sociais e econômicas têm sido a tônica em nosso Estado. Os pistoleiros a soldo dos audaciosos latifundiários e grileiros desafiam o cidadão e o poder público. Um episódio, ocorrido conosco em 1981, quando exercíamos o mandato de Deputado Federal, muito caracteriza essa audácia do grileiro. Ei-lo:
O Jornal do Brasil, edição de 25.08.81, publicou o seguinte anúncio: “MARANHÃO: área com dois milhões setecentos e setenta e dois mil hectares. Documentação e INCRA legais. Preço à vista: Hum bilhão e quinhentos milhões de cruzeiros. Informações com Hugo Aurélio Ferreira. Telefone (Rio) PABS – 287-1765. Creci – 4987”. Imediatamente, investigamos o fato e concluímos, em discurso na Câmara dos Deputados, que se tratava de venda de parte da fictícia "Fazenda Iguamã”, a maior fraude cartorial conhecida no Brasil, desde o Descobrimento.
Tinha a "Fazenda Iguamã" uma área correspondente a 10% do território do Estado do Maranhão, cerca de 40.000 km2, portanto superior à superfície do Estado de Sergipe. Felizmente, impedimos que mais uma fraude prosperasse.
Depois das várias gestões das terras de domínio do Estado eivadas de irregularidade e equívocos, perdemos recentemente, no intervalo que vai de 15.03.1985 a 5.10.1991, duas oportunidades de ouro para corrigir o mal que fora feito.
A primeira oportunidade ocorreu quando o Sr. José Sarney assumiu a Presidência da República, anunciando um Plano de Reforma Agrária para o país. O plano gorou. No Maranhão, em que pese os 59 decretos e uma revogação do Presidente Sarney, declarando de interesse social, para fins de desapropriação, imóveis rurais com mais de 635 mil hectares, nenhuma reforma agrária efetivou-se. Ficou na desapropriação. Vários autos desapropriatórios escondiam, em verdade, a compra pela União, por bom preço, de centenas de milhares de hectares de imóveis rurais, anteriormente vendidos pelo Estado a terceiros, a preço irrisório, tanto pela Lei Sarney de Terras, quanto pela Comarco. O governo do Presidente Sarney também comprou terras mediante suspeitos acordos. Aí está o caso da compra da gleba Terra Bela, oriunda da Comarco, pelo extinto Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (MIRAD), por dez vezes o valor real, conforme matéria do jornalista Walter Rodrigues, publicada em "O Estado do Maranhão”, edição de 15.01.1989.
A outra oportunidade de ouro perdida foi fruto da omissão da nossa e de outras bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado, nesta e na legislatura passada. Fizeram vista grossa para o artigo 51 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que, por oportuno, transcrevemos: “Art. 51. Serão revistos pelo Congresso Nacional, através de comissão mista, nos três anos a contar da data da promulgação da Constituição, todas as doações, vendas e concessões de terras públicas, com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 1° de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987”.
Na legislatura passada, a comissão mista, que tinha como um de seus membros o senador Edison Lobão, não se reuniu uma vez sequer. Na atual, reuniu-se uma vez, para eleger presidente, vice-presidente e relator. No dia 5 deste mês, deixou de existir a comissão mista, por força do citado artigo 51.
O Partido Socialista Brasileiro (PSB), espécie de comissão de frente da igreja progressista no Maranhão, mas com acordo por baixo dos panos com o grupo Sarney, tem como seu líder na Câmara dos Deputados o Sr. José Carlos Sabóia, eleito duas vezes pela base social rural maranhense. Pois esse deputado não tomou qualquer medida regimental, como líder do PSB na Câmara, nestes três últimos anos, visando o funcionamento da natimorta comissão mista de deputados e senadores, incumbida de rever as doações, vendas e concessões de terras públicas. Lá, na Câmara, como aqui, no Maranhão, não desenvolve uma ação objetiva para diminuir o conflito fundiário. Continua tão somente com o discurso do protesto e da denúncia, pronunciado sempre sobre o cadáver do posseiro abatido pela polícia ou pelo jagunço do latifundiário.
Neste escrito, relacionamos fatos, procurando subsidiar o debate aberto pela CNBB, em defesa dos direitos dos posseiros e trabalhadores rurais.
E, para terminar, palavras do papa João Paulo II, na encíclica “Laborem Exercens”, que, ouvidas no Maranhão, são palavras em defesa dos posseiros: “A propriedade e os meios de produção adquirem-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir o trabalho (...) Estes não podem ser possuídos por possuir, porque o único título legítimo para sua posse (...) é que eles sirvam ao trabalho e que, conseqüentemente, servindo ao trabalho, tornem possível a realização do primeiro princípio desta ordem, que é destinação universal dos bens e do direito ao seu uso comum”.
(*) Domingos Freitas Diniz é engenheiro civil. Entre as décadas de 1960 e 1980 exerceu três mandatos de deputado federal, sempre em oposição à ditadura militar.
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