sábado, 16 de maio de 2020

O MILITANTE DA VIDA INTEIRA - homenagem póstuma a Wagner Baldez (*) [um emocionante texto de Simei a seu pai]

Wagner Baldez, em Havana, quando visitou Cuba


Nasci quase ao som das teclas de uma máquina Olivetti que papai possuía. Mecânica, dessas que tivéssemos guardado hoje, seria vendida a preço bom em qualquer antiquário. Era sua poderosa e inquietante máquina de combate contra todos os desmandos dos poderosos da Barra do Corda!
Naquela época, perseguição política era sinônimo de risco de vida! Uma lembrança que me acompanha é de “vozinha” se jogando aos seus pés implorando em vão para que ele não subisse ao palanque aquele dia, porque o homem que enfrentava era poderoso e deixava um rastro de medo com sua arrogância insana – e sua arma de fogo!
(Seria um tal “espalha brasa”, diretor dos Correios, que nosso pai afrontou movido por sua congênita solidariedade, neste caso com colegas da repartição que eram perseguidos e humilhados por esse homem)
Foram muitas e muitas vezes que papai se ausentou dos eventos familiares para se entregar à política. Porque, como figura em uma passagem dos “Subterrâneos da Liberdade”, trilogia memorável de Jorge Amado que meu pai me fez ler lá pela casa dos dez anos, um comunista tem que odiar. Odiar a injustiça. Odiar tudo que oprime e desfigura o ser humano.
Mas, acima de tudo, um comunista tem que amar: amar a humanidade como se fosse uma extensão de sua própria família! Por isso essa escassez de comunistas, mesmo entre os que se proclamam.
Foram inumeráveis escritos em favor das causas da sociedade cordinha. Terra que adotou como segunda cidadania, e que, me perdoem o neologismo, lhe plantou na alma a sertanejidade.
Papai conhecia o sertão da Barra do Corda como poucos! E conhecia mesmo: de andar em cima de animal de carga, como inspetor de linhas dos Correios e Telégrafos. O que lhe valia uma prosa requentada de histórias com sabor de estórias! Um dos artigos mais belos de meu pai, descreve a época do ano em que o sertão cordino florescia!
Era um funcionário público vocacionado. E me perdoem, mais uma vez, irrepreensível, desses que se dedicam ao ofício com paixão e zelo. Incapaz de levar um clipe para casa. Incapaz de deixar o espírito público se conspurcar por qualquer tipo de vantagem pessoal.
A certa altura, pesou sobre ele a denúncia de que teria hospedado Carlos Lamarca, o “Capitão da Guerrilha”, que, em sua passagem pelo sertão nos idos de setenta, fora perseguido pelas forças de segurança nacional. Papai sabia receber como poucos, com fartura na dispensa e no coração. Mas aquele hóspede de primeira grandeza no ideário comunista, para sua inegável tristeza, não frequentara sua hospitalidade!
A trama do bem na Terra tem tessitura delicada. E o militarismo de botas pesadas não podia tolerar aquele bastardo insolente! Dr. Pedro Emanoel, advogado amigo de papai, o aconselhou a aceitar o afastamento dos Correios, sob pena de irmos visitar as fronteiras do nosso País sem passagem de volta!
Papai foi afastado dos Correios com soldo reduzidíssimo. E, de uma hora para outra, viu-se obrigado a voltar para São Luis, para viver “de favor” na casa de uma tia, que também o ajudava financeiramente. Era a casa onde passara sua infância, e a ele o que importava de fato era que a varanda se abria à Natureza.
Mamãe nunca o perdoou, “por ser bom para os outros mais do que à sua própria família”. Afinal, papai sequer tiraria uma casa pelo INCRA, como muitos fizeram, mesmo depois de ter se tornado, anos depois, Secretário de Administração da Barra do Corda.
Qual o quê! Havia de se preocupar muito mais com as condições de trabalho e segurança dos trabalhadores da limpeza pública. Os invisíveis, a quem se dedicou a valorizar e reconhecer publicamente. Bem à frente de seu meio, defendia que a limpeza pública deveria ser vista como uma questão de saúde pública.
As constantes ausências de nosso pai eram sobejamente compensadas: papai era um mago! Sua presença passava a limpo toda a distância. Ele fazia um simples isopor de mercado central virar um invejável acessório de campeão mundial, nas piscinas olímpicas do Maracanã! Césares se erguiam à nossa vista, encarnados em sua figura vibrante e um Aníbal, célebre general cartaginês, era por ele convocado para comandar os soldadinhos de chumbo lá nas batalhas campais do nosso sítio!
Certa vez, uma amiga de minha irmã Silen nos disse: “Seu Wagner é um sedutor”. Seu carisma contagiava.
Contagiou funcionários desmotivados do Almoxarifado da Secretaria de Educação do Estado, quando ele, convidado por Conceição Raposo, chefiou esse órgão. Tinha uma capacidade de trabalho extraordinária, ao qual se juntava uma sensibilidade para dedicar-se às pessoas que liderava. Quando pediu demissão, ganhou uma declaração assinada por TODOS os funcionários, buscando demovê-lo da decisão!
Tempos depois, ouvi de um pequeno fornecedor do Almoxarifado que, ‘apesar’ do preciosismo de papai, fora o único período em que os pequenos, como ele, tiveram condições de competitividade!
Talvez porque fora introduzido no ideal comunista pela Dra. Maria Aragão, e na política partidária pelo Dr. Henrique de La Roque Almeida. Homem de centro, mas que, segundo a própria Maria, era possuidor de um caráter íntegro e capaz de um exercício de imparcialidade incomum! Amigo pessoal de papai, que o homenageou em seu único filho.
Papai fazia parte da geração dos velhos comunistas. Aqueles que passaram pela crítica dos anos 50 incólumes, e nunca leram o Capital. Admirador apaixonado de Getúlio Vargas, Jango, Brizola, Luis Carlos Prestes, Karl Marx, Stálin, Fidel Castro, e de Maria Aragão. Para essa geração, o único requisito para ser considerado comunista era o desejo simples de fazer o bem à humanidade através da política, movida pelo ideal de uma fraternidade de iguais.
Mas, nele, esse desejo era tão pródigo que o fazia garimpar os dias atrás de ser útil às pessoas, fosse com “aposentos”, remédios, ou vagas para cirurgias.
Vinculou-se às lutas do MDB, quando isso representava se posicionar contra o autoritarismo; às lutas do PT, quando isso representava um projeto ético de participação popular no poder; e, por último, desaguou no PSOL, porque precisava de trincheira. Lá esteve lado a lado com homens de nobreza de caráter e afetividade apurada como um Franklin Douglas, que lhe dedica um amor filial.
Atuou na histórica greve de 51, e foi sistematicamente contra o vitorinismo, e em 79, deu sua contribuição à greve da meia passagem. Em 85, apostou na candidatura a prefeito de Haroldo Saboia, a quem dedicou, até o fim, uma calorosa admiração. Apoiou Jackson Lago ao governo e se integrou ativamente na resistência deste ao golpe covarde de Roseana Sarney.
Desde que “Sarney traiu as oposições” como ele testemunhava, lutou com todas as forças contra a oligarquia que este capitaneava, e que até hoje segrega as estruturas íntimas da sociedade maranhense. Creio que ninguém mais do que meu pai tenha escrito combatendo a perfídia política de Sarney (na luta real do bem contra o mal, não existe Coringa sem Batman!).
Na vida sindical, assumiu a coordenação da Secretaria dos aposentados. Sempre inabalável na defesa de seus ideais. Sempre enfrentando, com franqueza, por vezes desconcertante, os desvios da esquerda.
Meu pai foi profundamente humano, quando humano significa que, mesmo nos defeitos, não havia nele nenhum resquício de má-fé. E que tinha um senso de solidariedade com as fraquezas humanas quase perturbador.
Era a versão masculina da Dona Genu na política: tivesse notícia de um movimento popular pela melhoria de vida da família humana, lá estaria ele!
Decepções políticas? Muitas! Papai tinha uma vocação irreparável para a credulidade. A mais forte, com Lula. Mas isso não aniquilou sua fé em permanecer na luta política. Não havia mais tempo para isso.
Quando se trata da morte de entes queridos idosos, costuma-se perguntar: “quantos anos ele tinha?” – como parte de uma espécie de economia do luto. Mas a pergunta fundamental continua sendo: “quanto amor ele foi capaz de derramar?”
E nosso pai foi capaz de derramar muito, mas muito amor. Por isso as inúmeras manifestações de afeto e de solidariedade que recebeu e que nós, da família, recebemos, por ocasião de sua passagem. Somos profundamente gratos a todas elas!
Quem em sua vida, como no caso de nosso pai, foi capaz de ir contra o status quo – político e religioso, e ser tão amado mesmo pelos que não compreendiam o comunismo e continuam até hoje a dizer que “comunista é quem come criancinhas”, é porque sabe estar diante do outro com o coração puro.
Meu pai era o queridinho dos Ribeiros. Mas era também um queridinho dos Nepomucenos (minha mãe, muito frequentemente, tinha que reivindicar sua filiação frente a ele), dos Lopes, dos Cunhas, dos Baldez; o queridinho dos filhos e dos netos, das pessoas de e da rua e dos taxistas de sua redondeza, e enfim, de uma fraternidade de iguais que ele soube despertar e cultivar. Ele não se deixou amargurar pela fatalidade de uma mãe esquizofrênica e um pai que lhe negou um sobrenome!
Ao contrário, à exceção dos três últimos anos, foi a pessoa que eu conheci mais incrivelmente capaz de satisfação com as coisas simples. Papai tinha uma despudorada vocação para a felicidade! E mesmo nos três últimos sofridos anos, lutou furiosamente pela vida!
Tenho convicção de que fosse São Pedro o sujeito reivindicado pelas almas mais recalcitrantes do conservadorismo, quando visse meu pai às portas do céu, diria: “Por favor! Por favor! Deixa esse aí entrar! Ele é o quê? Ah, comunista... Bom, agora já foi”.
A morte em tempos de Covid é de uma crueza acachapante. Aquilo que desde cedo foi reconhecido como um ato eminentemente humano – o homem é o único animal que tem um rito de enterrar seus mortos –, nos é negado.
E, ao invés, nenhum reconhecimento do corpo, nenhum velar, nenhum cortejo; o motorista da funerária completamente aterrorizado em pegar o corpo frouxo no saco que cliva a fronteira com o contagioso, o leva com velocidade vertiginosa para o cemitério, onde o caixão é sacudido apressadamente em uma gaveta, com massa de cimento bruto selando qualquer possibilidade de emergir o humano.
Mais uma vez fui profundamente grata a meu pai, por ter me ensinado que, dentre tantas dimensões da palavra, há essa de consagrar o absurdo à ordem do humano.
Entre apenas três pessoas – o neto Pedro, o sobrinho-filho Flávio e um representante da nova geração que já compartilha dos seus ideais, o Bruno, fiz uma emocionada homenagem póstuma a meu pai. E, embora não tenha sequer paciência com redes sociais, fiz questão de filmá-la. Para que todos soubessem que nosso pai e amigo não foi enterrado como um insignificante! Missão cumprida.
Quis Deus que não tenha morrido de nenhum dos males que o acometiam ultimamente. Parecia destinado ao Covid, até nesse momento integrando seu sofrimento particular ao sofrimento da humanidade.
Vejo que isso nos preparava para aceitar a sua passagem, já que este é um momento no qual somos convocados a amar à distância, com novos signos, e novas expressões, preservando os que amamos e elevando a nossa qualidade de amor porque, frente à impotência, temos a única opção de entregar os nossos, com maior confiança do que jamais tivemos, ao agir de Deus.
Como passarinho ao relento que sempre gostou de ser, “livre filho das montanhas, da camisa aberta o peito – pés descalços, braços nus” papai rompeu com a prisão de um corpo de impossibilidades e reencontrou-se em pleno voo para a eternidade!
Serenemos. Tudo continua como sempre foi. Agora, como antes, o maior perigo é o de perdermos a alma. E homens como meu pai nos ensinam que perdemos a alma quando descremos do bem.


(*) Escrito pela filha Simei. O título, ela tomou emprestado de uma das homenagens prestadas a meu pai.