Wagner Baldez, em Havana, quando visitou Cuba |
Nasci quase
ao som das teclas de uma máquina Olivetti que papai possuía. Mecânica, dessas
que tivéssemos guardado hoje, seria vendida a preço bom em qualquer antiquário.
Era sua poderosa e inquietante máquina de combate contra todos os desmandos dos
poderosos da Barra do Corda!
Naquela
época, perseguição política era sinônimo de risco de vida! Uma lembrança que me
acompanha é de “vozinha” se jogando aos seus pés implorando em vão para que ele
não subisse ao palanque aquele dia, porque o homem que enfrentava era poderoso
e deixava um rastro de medo com sua arrogância insana – e sua arma de fogo!
(Seria um
tal “espalha brasa”, diretor dos Correios, que nosso pai afrontou movido por
sua congênita solidariedade, neste caso com colegas da repartição que eram
perseguidos e humilhados por esse homem)
Foram muitas
e muitas vezes que papai se ausentou dos eventos familiares para se entregar à
política. Porque, como figura em uma passagem dos “Subterrâneos da Liberdade”, trilogia
memorável de Jorge Amado que meu pai me fez ler lá pela casa dos dez anos, um
comunista tem que odiar. Odiar a injustiça. Odiar tudo que oprime e desfigura o
ser humano.
Mas, acima
de tudo, um comunista tem que amar: amar a humanidade como se fosse uma
extensão de sua própria família! Por isso essa escassez de comunistas, mesmo
entre os que se proclamam.
Foram
inumeráveis escritos em favor das causas da sociedade cordinha. Terra que
adotou como segunda cidadania, e que, me perdoem o neologismo, lhe plantou na
alma a sertanejidade.
Papai
conhecia o sertão da Barra do Corda como poucos! E conhecia mesmo: de andar em
cima de animal de carga, como inspetor de linhas dos Correios e Telégrafos. O que
lhe valia uma prosa requentada de histórias com sabor de estórias! Um dos
artigos mais belos de meu pai, descreve a época do ano em que o sertão cordino
florescia!
Era um
funcionário público vocacionado. E me perdoem, mais uma vez, irrepreensível, desses
que se dedicam ao ofício com paixão e zelo. Incapaz de levar um clipe para
casa. Incapaz de deixar o espírito público se conspurcar por qualquer tipo de
vantagem pessoal.
A certa
altura, pesou sobre ele a denúncia de que teria hospedado Carlos Lamarca, o “Capitão
da Guerrilha”, que, em sua passagem pelo sertão nos idos de setenta, fora perseguido
pelas forças de segurança nacional. Papai sabia receber como poucos, com
fartura na dispensa e no coração. Mas aquele hóspede de primeira grandeza no
ideário comunista, para sua inegável tristeza, não frequentara sua hospitalidade!
A trama do
bem na Terra tem tessitura delicada. E o militarismo de botas pesadas não podia
tolerar aquele bastardo insolente! Dr. Pedro Emanoel, advogado amigo de papai,
o aconselhou a aceitar o afastamento dos Correios, sob pena de irmos visitar as
fronteiras do nosso País sem passagem de volta!
Papai foi afastado
dos Correios com soldo reduzidíssimo. E, de uma hora para outra, viu-se
obrigado a voltar para São Luis, para viver “de favor” na casa de uma tia, que
também o ajudava financeiramente. Era a casa onde passara sua infância, e a ele
o que importava de fato era que a varanda se abria à Natureza.
Mamãe nunca
o perdoou, “por ser bom para os outros mais do que à sua própria família”. Afinal,
papai sequer tiraria uma casa pelo INCRA, como muitos fizeram, mesmo depois de
ter se tornado, anos depois, Secretário de Administração da Barra do Corda.
Qual o quê! Havia
de se preocupar muito mais com as condições de trabalho e segurança dos trabalhadores
da limpeza pública. Os invisíveis, a quem se dedicou a valorizar e reconhecer
publicamente. Bem à frente de seu meio, defendia que a limpeza pública deveria
ser vista como uma questão de saúde pública.
As
constantes ausências de nosso pai eram sobejamente compensadas: papai era um
mago! Sua presença passava a limpo toda a distância. Ele fazia um simples
isopor de mercado central virar um invejável acessório de campeão mundial, nas
piscinas olímpicas do Maracanã! Césares se erguiam à nossa vista, encarnados em
sua figura vibrante e um Aníbal, célebre general cartaginês, era por ele convocado
para comandar os soldadinhos de chumbo lá nas batalhas campais do nosso sítio!
Certa vez,
uma amiga de minha irmã Silen nos disse: “Seu Wagner é um sedutor”. Seu carisma
contagiava.
Contagiou
funcionários desmotivados do Almoxarifado da Secretaria de Educação do Estado,
quando ele, convidado por Conceição Raposo, chefiou esse órgão. Tinha uma
capacidade de trabalho extraordinária, ao qual se juntava uma sensibilidade
para dedicar-se às pessoas que liderava. Quando pediu demissão, ganhou uma declaração
assinada por TODOS os funcionários, buscando demovê-lo da decisão!
Tempos
depois, ouvi de um pequeno fornecedor do Almoxarifado que, ‘apesar’ do
preciosismo de papai, fora o único período em que os pequenos, como ele, tiveram
condições de competitividade!
Talvez
porque fora introduzido no ideal comunista pela Dra. Maria Aragão, e na política
partidária pelo Dr. Henrique de La Roque Almeida. Homem de centro, mas que,
segundo a própria Maria, era possuidor de um caráter íntegro e capaz de um
exercício de imparcialidade incomum! Amigo pessoal de papai, que o homenageou
em seu único filho.
Papai fazia
parte da geração dos velhos comunistas. Aqueles que passaram pela crítica dos
anos 50 incólumes, e nunca leram o Capital. Admirador apaixonado de Getúlio
Vargas, Jango, Brizola, Luis Carlos Prestes, Karl Marx, Stálin, Fidel Castro, e
de Maria Aragão. Para essa geração, o único requisito para ser considerado
comunista era o desejo simples de fazer o bem à humanidade através da política,
movida pelo ideal de uma fraternidade de iguais.
Mas, nele,
esse desejo era tão pródigo que o fazia garimpar os dias atrás de ser útil às
pessoas, fosse com “aposentos”, remédios, ou vagas para cirurgias.
Vinculou-se
às lutas do MDB, quando isso representava se posicionar contra o autoritarismo;
às lutas do PT, quando isso representava um projeto ético de participação
popular no poder; e, por último, desaguou no PSOL, porque precisava de
trincheira. Lá esteve lado a lado com homens de nobreza de caráter e
afetividade apurada como um Franklin Douglas, que lhe dedica um amor filial.
Atuou na
histórica greve de 51, e foi sistematicamente contra o vitorinismo, e em 79, deu
sua contribuição à greve da meia passagem. Em 85, apostou na candidatura a
prefeito de Haroldo Saboia, a quem dedicou, até o fim, uma calorosa admiração.
Apoiou Jackson Lago ao governo e se integrou ativamente na resistência deste ao
golpe covarde de Roseana Sarney.
Desde que
“Sarney traiu as oposições” como ele testemunhava, lutou com todas as forças
contra a oligarquia que este capitaneava, e que até hoje segrega as estruturas
íntimas da sociedade maranhense. Creio que ninguém mais do que meu pai tenha
escrito combatendo a perfídia política de Sarney (na luta real do bem contra o
mal, não existe Coringa sem Batman!).
Na vida
sindical, assumiu a coordenação da Secretaria dos aposentados. Sempre
inabalável na defesa de seus ideais. Sempre enfrentando, com franqueza, por
vezes desconcertante, os desvios da esquerda.
Meu pai foi
profundamente humano, quando humano significa que, mesmo nos defeitos, não
havia nele nenhum resquício de má-fé. E que tinha um senso de solidariedade com
as fraquezas humanas quase perturbador.
Era a versão
masculina da Dona Genu na política: tivesse notícia de um movimento popular pela
melhoria de vida da família humana, lá estaria ele!
Decepções
políticas? Muitas! Papai tinha uma vocação irreparável para a credulidade. A
mais forte, com Lula. Mas isso não aniquilou sua fé em permanecer na luta política.
Não havia mais tempo para isso.
Quando se
trata da morte de entes queridos idosos, costuma-se perguntar: “quantos anos
ele tinha?” – como parte de uma espécie de economia do luto. Mas a pergunta
fundamental continua sendo: “quanto amor ele foi capaz de derramar?”
E nosso pai
foi capaz de derramar muito, mas muito amor. Por isso as inúmeras manifestações
de afeto e de solidariedade que recebeu e que nós, da família, recebemos, por
ocasião de sua passagem. Somos profundamente gratos a todas elas!
Quem em sua
vida, como no caso de nosso pai, foi capaz de ir contra o status quo – político e religioso, e ser tão amado mesmo pelos que
não compreendiam o comunismo e continuam até hoje a dizer que “comunista é quem
come criancinhas”, é porque sabe estar diante do outro com o coração puro.
Meu pai era
o queridinho dos Ribeiros. Mas era também um queridinho dos Nepomucenos (minha
mãe, muito frequentemente, tinha que reivindicar sua filiação frente a ele), dos
Lopes, dos Cunhas, dos Baldez; o queridinho dos filhos e dos netos, das pessoas
de e da rua e dos taxistas de sua redondeza, e enfim, de uma fraternidade de iguais
que ele soube despertar e cultivar. Ele não se deixou amargurar pela fatalidade
de uma mãe esquizofrênica e um pai que lhe negou um sobrenome!
Ao
contrário, à exceção dos três últimos anos, foi a pessoa que eu conheci mais
incrivelmente capaz de satisfação com as coisas simples. Papai tinha uma
despudorada vocação para a felicidade! E mesmo nos três últimos sofridos anos,
lutou furiosamente pela vida!
Tenho
convicção de que fosse São Pedro o sujeito reivindicado pelas almas mais
recalcitrantes do conservadorismo, quando visse meu pai às portas do céu,
diria: “Por favor! Por favor! Deixa esse aí entrar! Ele é o quê? Ah, comunista...
Bom, agora já foi”.
A morte em
tempos de Covid é de uma crueza acachapante. Aquilo que desde cedo foi
reconhecido como um ato eminentemente humano – o homem é o único animal que tem
um rito de enterrar seus mortos –, nos é negado.
E, ao invés,
nenhum reconhecimento do corpo, nenhum velar, nenhum cortejo; o motorista da
funerária completamente aterrorizado em pegar o corpo frouxo no saco que cliva
a fronteira com o contagioso, o leva com velocidade vertiginosa para o
cemitério, onde o caixão é sacudido apressadamente em uma gaveta, com massa de
cimento bruto selando qualquer possibilidade de emergir o humano.
Mais uma vez
fui profundamente grata a meu pai, por ter me ensinado que, dentre tantas
dimensões da palavra, há essa de consagrar o absurdo à ordem do humano.
Entre apenas
três pessoas – o neto Pedro, o sobrinho-filho Flávio e um representante da nova
geração que já compartilha dos seus ideais, o Bruno, fiz uma emocionada homenagem
póstuma a meu pai. E, embora não tenha sequer paciência com redes sociais, fiz
questão de filmá-la. Para que todos soubessem que nosso pai e amigo não foi
enterrado como um insignificante! Missão cumprida.
Quis Deus
que não tenha morrido de nenhum dos males que o acometiam ultimamente. Parecia
destinado ao Covid, até nesse momento integrando seu sofrimento particular ao
sofrimento da humanidade.
Vejo que
isso nos preparava para aceitar a sua passagem, já que este é um momento no
qual somos convocados a amar à distância, com novos signos, e novas expressões,
preservando os que amamos e elevando a nossa qualidade de amor porque, frente à
impotência, temos a única opção de entregar os nossos, com maior confiança do
que jamais tivemos, ao agir de Deus.
Como
passarinho ao relento que sempre gostou de ser, “livre filho das montanhas, da
camisa aberta o peito – pés descalços, braços nus” papai rompeu com a prisão de
um corpo de impossibilidades e reencontrou-se em pleno voo para a eternidade!
Serenemos.
Tudo continua como sempre foi. Agora, como antes, o maior perigo é o de perdermos
a alma. E homens como meu pai nos ensinam que perdemos a alma quando descremos
do bem.
(*) Escrito pela filha Simei. O título, ela tomou emprestado de
uma das homenagens prestadas a meu pai.
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