terça-feira, 10 de setembro de 2013

Artigo Francisco Valdério: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DO 11 DE SETEMBRO



Por Francisco Valdério (*)

Rememorar o 11 de Setembro é se solidarizar com todos aqueles que direta ou indiretamente testemunharam o horror daquele fatídico dia: uma manhã de terça-feira, em que um grupo neofacista e seus aliados, mobilizados pelo ódio e a intolerância, atacaram covardemente e vitimaram milhares de inocentes ceifando suas vidas. Esses inimigos da liberdade interromperam brutalmente sonhos. O sangrento ataque veio pelo ar, aviões bombardearam o coração destes sonhos, o Palácio de La Moneda, sede do governo democrático-popular do Chile no ano de 1973.
Essa narrativa não esconde sua inspiração no lúcido curta de 2002 de Ken Loach, 29 anos após o evento e um ano depois de outro acontecimento marcado pela trágica coincidência histórica: o 11 de Setembro dos EUA. Entretanto, mais que realçar as semelhanças entre tais eventos, é necessário compreendê-los em suas contradições e, a partir delas, perceber o significado para história humana. Pelo transcurso do tempo entre ambos acontecimentos, estamos mais do que naquela situação e ocasião, para falarmos como Paul Ricoeur, de passarmos da comoção absoluta à consideração relativa.
Não é difícil concordar com essa última afirmação. Sobretudo quando observamos, por um lado, que no decorrer das semanas que antecederam o 10º (mas igualmente o 11º e 12º) aniversário do desabamento das Torres Gêmeas dos EUA, não faltaram reportagens especiais seriadas em todos os telejornais, além de extensas matérias jornalísticas na mídia impressa cuja diretriz não é outra senão o apelo à dor da perda individual como única característica digna de lembrança. E, por outro lado, um total esquecimento do Golpe de Estado no Chile, agora no seu quadragésimo aniversário, que implantou a ditadura de Pinochet culminando na morte de 30 mil pessoas, entre elas o presidente Salvador Allende.
É verdade que setores da chamada mídia alternativa, alojada em boa medida em revistas e internet (blogs, redes sociais, etc), disseminam e contrapõem, sempre, ao 11 de Setembro estadunidense o 11 de Setembro chileno. Contudo, é preciso ir além. Sem sobrevalorizar a lembrança de nenhum deles ou relegar qualquer um dos fatos ao esquecimento, é preciso perpassá-los, compreendê-los num mesmo movimento cuja coincidência extraída esteja para além do dia e drama. Pois que diferença há entre Osama bin Laden e Richad Nixon ou Henry Kissinger? Ou entre organizações como Al Qaeda e Patria y Liberdad cuja fomentação e instrumentalização estiveram, em algum momento, a cargo da CIA? Em política, extremos e fundamentalismos sempre se igualam nos métodos.
Os dois eventos, que de alguma forma se encontram, são dignos da mais fecunda reflexão porque nos interrogam ainda sobre muito do que somos e queremos atingir. Ambos refletem, cada um a seu modo e conjuntamente, os desígnios humanos. Refletem, como nos ensina Hegel, um tempo que é apreendido no conceito, ou seja, a compreensão da história com sentido. Aquela experiência iniciada em 1970 e interrompida em 1973 no Chile - disposta a realizar a passagem da antiga sociedade à nova - estava à frente de seu tempo exatamente por tê-lo melhor compreendido.
Experiência inovadora que pagou um alto preço por tamanha ousadia histórica: a Revolução Chilena se propunha verdadeira e radicalmente democrática em plena Guerra Fria. Seus pressupostos buscavam o sonho da emancipação da humanidade, da distribuição igualitária da riqueza universal, dos valores mais elevados para a promoção da harmonia dos povos, enfim, da construção de uma sociedade melhor. E tudo isso considerando as vozes dissonantes no pluripartidarismo, da manutenção da independência do judiciário e da garantia de uma imprensa livre. Em outras palavras, estava mantida a estrutura da ordem constitucional do Estado de Direito - a despeito da franca desvantagem da UP nessas três frentes. A via pacífica e democrática adotada pelo Chile expressava a necessidade do diálogo no mundo extremamente surdo ante a bipolaridade. O rumo ao socialismo democrático chileno na década de 1970 é irredutível à figura da retórica propagandista tão comum na política.
Contudo, paradoxalmente, é essa conjuntura do aprofundamento da democracia no Chile de Allende que, de certa forma, ajudou os conspiradores na implantação de uma das ditaduras militares mais cruéis e sanguinárias que a América Latina conheceu em sua história recente. A intolerância que assinalava aqueles tempos de Guerra Fria (e que ainda persiste em nossos dias pelo lado que se supõe vencedor, bastaria atualmente observar o monitoramento secreto que mantém sobre boa parte do mundo, assim como a iminente invasão da Síria) liquidou a experiência democrática que vigorava no Chile e que vinha em progressão desde os anos 1920. Sob a liderança e a logística dos EUA, o Golpe de Estado no Chile foi violento e brutal. Anos mais tarde, serão os norte-americanos a chorarem seus cadáveres sob os escombros de seus monumentos que também são as ruínas de sua própria história intervencionista.
É aqui que, curiosamente, os eventos se tocam e se atravessam. As vítimas do 11 de Setembro do Chile são vítimas da ganância e da política invasora dos EUA, assim como as vítimas do WTC e do Pentágono também são sucedâneas da mesma ganância e da mesma política, só que sob aspecto diverso e reversível: o de uma resistência que não conhece outra via senão o da cega violência igualmente (des)proporcional. Os que perderam a vida no 11 de Setembro do Chile não a perderam em vão, seus sonhos de uma humanidade vivendo e convivendo com dignidade e justiça, são o seu mais sonoro recado ao presente em que a potência que se proclama vencedora, hoje às vésperas de mais uma guerra, também chora seus mortos exatamente por negar esta vida digna a tantas outras nações empobrecidas em nome e promoção do seu terror de Estado. Se o 11 de Setembro norte-americano é seu holocausto - como tentam nos fazer acreditar quase todas as mídias e documentários produzidos sobre o tema até então - é preciso perguntar em nome do que foram sacrificadas no altar da história aquelas vidas? Serviram tão somente, como temos visto, para alimentar ainda mais esse modelo capitalista agressor dos povos, intolerante e letal, cujo agravante é o aumento do sonho individualista que sustenta o consumismo e devasta vorazmente todos recursos do planeta?
São os valores que impulsionaram a Revolução Chilena que clamam para serem ouvidos hic et nunc: a liberdade dos povos, a confiança na pessoa humana, a justiça social calcada em sonhos e projetos coletivos. É curioso como a experiência chilena tem muito ainda a nos dizer e esclarecer. Já não é mais possível olhar para o 11 de Setembro dos EUA e não ver o Chile de 1973 sediciado em sua mensagem de esperança e humanidade. Da mesma maneira que não se pode deixar de lembrar esse Golpe de Estado que depôs Allende no 11 de Setembro, 40 anos atrás, e não enxergar as consequências funestas, em solo norte-americano, levadas a cabo pela sanha do lucro e da louvação do mercado. É assim, nessa mútua implicação, que tais eventos nos lembram da situação de bifurcação de nosso presente histórico e de todas as escolhas que aqui somos convocados a fazer.

(*)Francisco Valdério - 41, professor, é mestre e doutorando em Filosofia pela PUC/SP. E-mail: fderio@gmail.com

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