Por
Francisco Valdério (*)
Rememorar o 11 de
Setembro é se solidarizar com todos aqueles que direta ou indiretamente
testemunharam o horror daquele fatídico dia: uma manhã de terça-feira, em que
um grupo neofacista e seus aliados, mobilizados pelo ódio e a intolerância,
atacaram covardemente e vitimaram milhares de inocentes ceifando suas vidas.
Esses inimigos da liberdade interromperam brutalmente sonhos. O sangrento
ataque veio pelo ar, aviões bombardearam o coração destes sonhos, o Palácio de La Moneda, sede do governo democrático-popular
do Chile no ano de 1973.
Essa narrativa não
esconde sua inspiração no lúcido curta de 2002 de Ken Loach, 29 anos após o
evento e um ano depois de outro acontecimento marcado pela trágica coincidência
histórica: o 11 de Setembro dos EUA. Entretanto, mais que realçar as
semelhanças entre tais eventos, é necessário compreendê-los em suas
contradições e, a partir delas, perceber o significado para história humana.
Pelo transcurso do tempo entre ambos acontecimentos, estamos mais do que
naquela situação e ocasião, para falarmos como Paul Ricoeur, de passarmos da comoção absoluta à consideração
relativa.
Não é difícil concordar
com essa última afirmação. Sobretudo quando observamos, por um lado, que no
decorrer das semanas que antecederam o 10º (mas igualmente o 11º e 12º)
aniversário do desabamento das Torres Gêmeas dos EUA, não faltaram reportagens
especiais seriadas em todos os telejornais, além de extensas matérias
jornalísticas na mídia impressa cuja diretriz não é outra senão o apelo à dor
da perda individual como única característica digna de lembrança. E, por outro
lado, um total esquecimento do Golpe de Estado no Chile, agora no seu
quadragésimo aniversário, que implantou a ditadura de Pinochet culminando na
morte de 30 mil pessoas, entre elas o presidente Salvador Allende.
É verdade que setores da
chamada mídia alternativa, alojada em boa medida em revistas e internet (blogs,
redes sociais, etc), disseminam e contrapõem, sempre, ao 11 de Setembro
estadunidense o 11 de Setembro chileno. Contudo, é preciso ir além. Sem
sobrevalorizar a lembrança de nenhum deles ou relegar qualquer um dos fatos ao
esquecimento, é preciso perpassá-los, compreendê-los num mesmo movimento cuja
coincidência extraída esteja para além do dia e drama. Pois que diferença há
entre Osama bin Laden e Richad Nixon ou Henry Kissinger? Ou entre organizações
como Al Qaeda e Patria y Liberdad cuja fomentação e instrumentalização estiveram,
em algum momento, a cargo da CIA? Em política, extremos e fundamentalismos
sempre se igualam nos métodos.
Os dois eventos, que de
alguma forma se encontram, são dignos da mais fecunda reflexão porque nos
interrogam ainda sobre muito do que somos e queremos atingir. Ambos refletem,
cada um a seu modo e conjuntamente, os desígnios humanos. Refletem, como nos
ensina Hegel, um tempo que é apreendido no conceito, ou seja, a compreensão da
história com sentido. Aquela experiência iniciada em 1970 e interrompida em
1973 no Chile - disposta a realizar a passagem da antiga sociedade à nova -
estava à frente de seu tempo exatamente por tê-lo melhor compreendido.
Experiência inovadora
que pagou um alto preço por tamanha ousadia histórica: a Revolução Chilena se
propunha verdadeira e radicalmente democrática em plena Guerra Fria. Seus
pressupostos buscavam o sonho da emancipação da humanidade, da distribuição
igualitária da riqueza universal, dos valores mais elevados para a promoção da
harmonia dos povos, enfim, da construção de uma sociedade melhor. E tudo isso
considerando as vozes dissonantes no pluripartidarismo, da manutenção da
independência do judiciário e da garantia de uma imprensa livre. Em outras
palavras, estava mantida a estrutura da ordem constitucional do Estado de
Direito - a despeito da franca desvantagem da UP nessas três frentes. A via
pacífica e democrática adotada pelo Chile expressava a necessidade do diálogo no mundo extremamente surdo ante
a bipolaridade. O rumo ao socialismo democrático chileno na década de 1970 é
irredutível à figura da retórica propagandista tão comum na política.
Contudo, paradoxalmente,
é essa conjuntura do aprofundamento da democracia no Chile de Allende que, de
certa forma, ajudou os conspiradores na implantação de uma das ditaduras
militares mais cruéis e sanguinárias que a América Latina conheceu em sua
história recente. A intolerância que assinalava aqueles tempos de Guerra Fria
(e que ainda persiste em nossos dias pelo lado que se supõe vencedor, bastaria
atualmente observar o monitoramento secreto que mantém sobre boa parte do
mundo, assim como a iminente invasão da Síria) liquidou a experiência
democrática que vigorava no Chile e que vinha em progressão desde os anos 1920.
Sob a liderança e a logística dos EUA, o Golpe de Estado no Chile foi violento
e brutal. Anos mais tarde, serão os norte-americanos a chorarem seus cadáveres
sob os escombros de seus monumentos que também são as ruínas de sua própria
história intervencionista.
É aqui que,
curiosamente, os eventos se tocam e se atravessam. As vítimas do 11 de Setembro
do Chile são vítimas da ganância e da política invasora dos EUA, assim como as
vítimas do WTC e do Pentágono também são sucedâneas da mesma ganância e da
mesma política, só que sob aspecto diverso e reversível: o de uma resistência
que não conhece outra via senão o da cega violência igualmente
(des)proporcional. Os que perderam a vida no 11 de Setembro do Chile não a
perderam em vão, seus sonhos de uma humanidade vivendo e convivendo com
dignidade e justiça, são o seu mais sonoro recado ao presente em que a potência
que se proclama vencedora, hoje às vésperas de mais uma guerra, também chora
seus mortos exatamente por negar esta vida digna a tantas outras nações
empobrecidas em nome e promoção do seu terror de Estado. Se o 11 de Setembro
norte-americano é seu holocausto - como tentam nos fazer acreditar quase todas
as mídias e documentários produzidos sobre o tema até então - é preciso
perguntar em nome do que foram
sacrificadas no altar da história aquelas vidas? Serviram tão somente, como
temos visto, para alimentar ainda mais esse modelo capitalista agressor dos
povos, intolerante e letal, cujo agravante é o aumento do sonho individualista
que sustenta o consumismo e devasta vorazmente todos recursos do planeta?
São os valores que
impulsionaram a Revolução Chilena que clamam para serem ouvidos hic et nunc: a liberdade dos povos, a
confiança na pessoa humana, a justiça social calcada em sonhos e projetos
coletivos. É curioso como a experiência chilena tem muito ainda a nos dizer e
esclarecer. Já não é mais possível olhar para o 11 de Setembro dos EUA e não
ver o Chile de 1973 sediciado em sua mensagem de esperança e humanidade. Da
mesma maneira que não se pode deixar de lembrar esse Golpe de Estado que depôs
Allende no 11 de Setembro, 40 anos atrás, e não enxergar as consequências
funestas, em solo norte-americano, levadas a cabo pela sanha do lucro e da
louvação do mercado. É assim, nessa mútua implicação, que tais eventos nos
lembram da situação de bifurcação de nosso presente histórico e de todas as
escolhas que aqui somos convocados a fazer.
(*)Francisco
Valdério - 41, professor, é mestre e doutorando em Filosofia pela PUC/SP.
E-mail: fderio@gmail.com
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