terça-feira, 26 de maio de 2009

Intelectuais abordam o Maranhão (I): Wagner Cabral

Ecos das Lutas publica abaixo, na íntegra, análise do professor Wagner Cabral (História-UFMA) sobre o turbulento e recente período do Maranhão contemporâneo.

Polêmico, o texto inicia o processo de reflexão em ebulição na academia e nos movimentos sociais sobre o governo da Frente de Libertação. Originalmente, foi publicado no Boletim de Conjuntura nº 2 da CNBB (regional Nordeste 5). Longo e denso, porém provocativo ao debate, vale a pena ler e refletir.

Continuaremos a discussão em dois outros textos a serem posteriormente publicados aqui no blogue. Se o papel dos intelectuais é nos fazer ver mais à frente, Ecos não poderia deixar de antenar seus leitores/as nos cenários que se avizinham para a luta social anti-oligarca, pelo menos à luz das ideias de nossos intelectuais que se dispõem a pular os muros da Universidade. Boa leitura.


"A bomba suja: crise, corrupção e violência no Maranhão contemporâneo (2004-9)

Wagner Cabral da Costa*

Introduzo na poesia / a palavra diarréia.
Não pela palavra fria / mas pelo que ela semeia
Quem fala em flor não diz tudo.
Quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo / sem as palavras reais.
(A bomba suja, Ferreira Gullar)


1. Introdução
Há pouco mais de um ano foi lançado o primeiro Boletim da CNBB regional NE 5 (março/2008), quando tentamos, “pelo sapato furado” de um “cidadão do lixo”, esboçar uma análise da conjuntura estadual, marcada pela crise intraoligárquica e pelo primeiro ano de mandato da “Frente de Libertação do Maranhão”. De lá pra cá, a dinâmica dos acontecimentos políticos moveu-se a grande velocidade, com a conturbada realização das eleições municipais; novas operações da Polícia Federal, prendendo políticos acusados de corrupção; greves do funcionalismo público; a crise ética do Poder Judiciário estadual; o rápido encaminhamento do processo de cassação de Jackson Lago pelo TSE; a “guerra de blogs e e-mails”, travada na mídia (local, nacional e internacional); a organização do movimento dos “novos balaios” como resistência ao “golpe contra a democracia”; e, por fim, a “volta da guerreira”, com a posse de Roseana Sarney como governadora em 17 de abril de 2009.
Data, aliás, marcada por um trágico simbolismo, do massacre de camponeses sem-terra em Eldorado dos Carajás (1996), quando 19 trabalhadores foram mortos, 11 dos quais maranhenses, todos expulsos de sua
terra natal pela concentração da propriedade fundiária, apoiada e patrocinada pela oligarquia que agora retorna judicialmente ao poder, quer através da Lei de Terras de José Sarney (1969), quer através do desmonte do sistema de agricultura familiar nos governos de Roseana (1995-2001), para ficar em apenas
dois exemplos. Triste coincidência! Pobre Maranhão!

A roda da história girou sem parar no último ano, sendo preciso retomar o fio de Ariadne da interpretação crítica, visando nos situar na presente conjuntura e subsidiar o debate entre militantes, movimentos sociais e demais comprometidos com a causa dos excluídos, razão mesma da existência deste Boletim.

Sendo assim, sem a devida licença do poeta e na ausência de outras palavras, introduzo na política maranhense a palavra diarréia, em suas múltiplas e inventadas conotações políticas de sujeira, imundície, podridão, “mar de lama”, falta de ética, golpismo, verborragia, patrimonialismo, corrupção, violência,
oligarquização. Que o ventilador nos seja breve!

2. A “flor” da “Libertação”: disputas intra-oligárquicas e “produção da maioria” nas eleições municipais 2008.
No artigo anterior, apontamos a emergência de uma tendência na política maranhense: o aumento da competição política e a bipolarização das disputas eleitorais em torno de duas facções oligárquicas, o grupo Sarney (PMDB / DEM / PTB / PV) e o Condomínio do governo Jackson Lago (1) – forças aparentemente antípodas, cuja gravitação atraiu todo o espectro partidário, à exceção do PSOL e do PSTU.

Dessa maneira, num primeiro nível de análise, o pleito municipal de 2008 foi marcado pela estadualização da disputa, com cada facção arregimentando recursos políticos e econômicos, buscando apresentar candidaturas competitivas, bem como procurando “fazer” o maior número de prefeituras. Cabe destacar os
acirrados embates nos 25 maiores colégios eleitorais, com mais de 30 mil eleitores e que concentram 46,6% do eleitorado. Nesses colégios, com exceção de São Luís (onde a disputa foi fragmentada em inúmeras candidaturas, obedecendo a uma lógica diferenciada), bateram-se chapa com chapa cada grupo estadual. De modo que, em linhas gerais, o combate foi realizado entre duas “máquinas” políticas profundamente assentadas no patrimonialismo (uso do aparelho de Estado) e no clientelismo.

O resultado final é bem conhecido: o Condomínio foi “vitorioso”, obtendo pouco mais de 2/3 das prefeituras, maioria nos grandes colégios (São Luiz, Imperatriz, Caxias) e cerca de 60% dos votos do eleitorado. Para nossa análise, importa elucidar o modus operandi de formação da “maioria”, e se guardou alguma diferença substantiva em relação às práticas com as quais o grupo Sarney se manteve no poder.

Pois, visando transformar as eleições num 3º turno “anti-Sarney” e preparar o caminho para 2010, o Condomínio pôs em ação uma variedade de mecanismos, dentre os quais ressaltamos: a) a criação de “Frentes de Libertação” (e nomes assemelhados) em cerca de 50 municípios; b) no mesmo sentido, a formação de amplas coligações dos partidos da “base aliada” em torno da candidatura mais competitiva em cada município, independente das origens da mesma; c) a canalização de obras e convênios, bem como de recursos
públicos e privados para o financiamento de candidaturas; d) incentivos para o “troca-troca” partidário, com a “migração” de dezenas de prefeitos do grupo Sarney para a “base aliada” (especialmente PDT e PSDB). Acrescente-se ainda a manutenção de redes clientelistas (compra de votos) e o alto índice de reeleição
de prefeitos (66%) e teremos os ingredientes fundamentais da fórmula de “produção da maioria” pela “Frente de Libertação”.

Registre-se que os dividendos eleitorais foram divididos desigualmente no interior do Condomínio, segundo uma lógica que privilegiou o PDT (2) (agora repleto de ex-sarneístas) e o PSDB (3) (também formado por dissidentes do grupo Sarney), com pequena participação dos demais partidos
(que conseguiram incrementar sua porta-e-janela, fazendo seu “puxadinho”). O privilégio dado aos aliados politicamente mais conservadores se manifestou claramente em Imperatriz (apoio a Sebastião Madeira/PSDB em detrimento de Jomar Fernandes/PT) (4) e em São Luiz (apoio a João Castelo/PSDB contra Flávio
Dino/PC do B) (5), só para citar os dois casos mais relevantes.

Portanto, só não viu quem não quis que, diante da heterogeneidade interna do Condomínio, a opção feita foi pelo fortalecimento dos grupos de matriz oligárquica (PDT / PSDB), enquanto os setores de centro-esquerda (PT / PSB / PC do B) eram mantidos à base da cooptação (ocupação de cargos públicos), promessas futuras de apoio à (re)eleição para deputado ou senador (com algum espaço para tentarem criar “bases eleitorais” a partir da máquina pública) e apoios pontuais a candidaturas em pequenos municípios (ou indicação de vices) (6). Além, claro, do objetivo maior, em nome do qual “tudo foi perdoado”, o anti-sarneísmo. A opção de fazer vista grossa aos descaminhos, mazelas e contradições do governo foi racionalizada por esses setores na forma das incertas e elusivas expressões “governo em disputa” e “governo de transição”.

Em suma, verificou-se uma patrimonialização dos setores de centro-esquerda, na medida em que o cálculo político desses atores passou a privilegiar cada vez mais o Estado (para sua reprodução política entretecida com a fração oligárquica, quiçá com desejos inconfessos de incorporação) e não mais as relações com a Sociedade e os movimentos sociais (mesmo que, em nível de discurso, estes continuem teoricamente mantendo sua centralidade).


Mas voltemos ao argumento central: a “produção da maioria” pela fração oligárquica no poder, a partir do modus operandi patrimonial. Em primeiro lugar, é preciso ressalvar que não se trata de um fenômeno exclusivo do Maranhão.

Na Bahia, por exemplo, após a vitória do petista Jaques Wagner para governador (2006) e a morte do oligarca Antônio Carlos Magalhães (julho de 2007), o espólio do “carlismo” (que elegera 153 prefeitos pelo PFL em 2004, 37% do total de 417 municípios) foi disputado pelo PT no governo, pelo PMDB (de Geddel Vieira Lima, ministro da Integração Nacional do governo Lula) e pelo DEM (de ACM Neto, derrotado para prefeito em Salvador). Resultado: em 2008, o PMDB quase sextuplicou o número de prefeituras sob seu comando, saltando de 20 para 114; enquanto o PT triplicou, saindo de 21 para 66 prefeitos, com vários deles oriundos do “carlismo” pefelista (entre 10 e 15, pelo menos). Enquanto isso, o DEM caiu de 153 para 44 prefeituras.

De modo que, para compreender adequadamente esse processo, é preciso remontar às características mais gerais da política brasileira, em que o “governismo” (desprovido de qualquer ideologia e essencialmente pragmático) sempre foi uma marca dos atores ao longo da história, como forma de se aproximar do poder e de todas as benesses oriundas do mesmo (em termos de favores, recursos, empregos, “proteção” e reprodução social). No popular: juntou-se a fome (do governo estadual em formar uma nova “maioria”) com a
vontade de comer (dos políticos tradicionais em se acercar do governo).

A acumulação de capital político, obviamente, só pode traduzir-se nesse tipo de “mais-valia” (simultaneamente concreta e artificial) se seguir as regras do jogo: aceitar as adesões sem perguntas incômodas, “esquecer o passado” dos atuais aliados, manter as práticas do “toma-lá-dá-cá”, assumir o discurso hegemônico de hoje como se diretriz de toda uma vida fosse. Sobre esse tema, Machado de Assis desenvolveu a sua paradigmática “Teoria do Medalhão” (1881) [ou, em outros termos, “Sábios conselhos de um pai para o filho se dar bem na vida”], que, em se tratando de política, receitava:

“Venhamos ao principal. Uma vez, entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente...
Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos”.


Homem de seu tempo, Machado de Assis transfigurou estética e ironicamente o que era a própria experiência da política no Império, um sistema dito representativo e parlamentarista, mas centrado no Poder Moderador (de uso exclusivo do Imperador), que, conforme as circunstâncias, fazia e desfazia Gabinetes de Ministros, os quais, por sua vez, faziam e desfaziam “maiorias” parlamentares, ao convocar novas eleições que seriam “vencidas” impreterivelmente pelo partido do governo na base da fraude e do cacete. Era o desvirtuamento total do princípio representativo e da democracia, no que foi chamado de “Parlamentarismo às avessas”.

Como todos sabem, o maior discípulo vivo desse “bom conselho” é exatamente José Sarney, este belo e macróbio espécime de “medalhão”, um governista nato cuja longevidade remonta a Jânio Quadros (1961), João Goulart (1961-4), à ditadura militar (1964-85), Itamar Franco (1992-4), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e agora Lula (2003-2010), passando obviamente pelo seu período na Presidência (1985-89). Li certa vez, mas não consigo relembrar a fonte, que Sarney deveria andar com um cartaz pendurado no
pescoço: “De uso exclusivo da Presidência da República”.

Nestes termos, não deve causar espécie a sucessão de “conversões” (hoje “reconversões”) da “classe política” nos últimos anos. À primeira vista, tratar-seiam de verdadeiras epifanias, momentos mágicos nos quais são feitas revelações sobre o sentido das coisas e do Universo. Ou, então, trágica e angustiante descoberta de si: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (A metamorfose, Franz Kafka). Mas, por favor, sem exageros, que o Maranhão está
mais para a Realpolitik machadiana: “o melhor é não ter idéias!” (ver Anexo).

Em segundo lugar, a “produção da maioria” não é nenhuma novidade, pois o mesmo fenômeno sempre marcou o domínio do clã Sarney. Basta lembrarmos das duas eleições municipais anteriores.

Em 2000, por exemplo, Roseana Sarney se encontrava no auge da sua popularidade como governadora e sonhava com um vôo mais alto, ser candidata à presidência da República. Nessa conjuntura, não foi difícil para o grupo “fazer” cerca de 200 prefeitos (92%), com destaque para o PFL (73 prefeitos – 1/3 do total), e, ao mesmo tempo, patrocinar um acordo na capital com o até então oposicionista Jackson Lago (aliança PDT / PFL), o qual assim garantiu sua reeleição em 1º turno contra o (hoje aliado) tucano João Castelo.

Em 2004, a oligarquia Sarney procurava se recuperar do desgaste do escândalo Lunus (que destroçou as possibilidades de Roseana para presidente) e de uma acirrada eleição em 2002, na qual o candidato do grupo, José Reinaldo Tavares (PFL, depois dissidente em 2005, hoje no PSB), somente ganhou em 1º turno contra Jackson Lago (PDT, de volta à oposição), depois da “controversa” decisão do TRE de anular os votos de Ricardo Murad (então no oposicionista PSB, hoje no sarneísta PMDB) (7). [É impressão nossa ou todos esses personagens já foram aliados e/ou adversários em algum momento de suas trajetórias?].

Pois bem, em 2004, o grupo Sarney obteve cerca de 180 prefeituras (83%), destacando-se a apertada vitória de Ildon Marques (PMDB) em Imperatriz. O grupo ainda realizou uma iniciativa fracassada em São Luiz,
tentando projetar Ricardo Murad através da Gerência Metropolitana e um conjunto de obras públicas (viadutos e Vivas!). O resultado foi pífio: o cunhado de Roseana obteve apenas 7,7% dos votos.

Comparativamente, o Condomínio não obteve a mesma performance eleitoral do grupo Sarney: a “Frente de Libertação” elegeu 66% dos prefeitos em 2008, contra 92% (2000) e 83% (2004) da velha oligarquia, com a ressalva de que a Frente elegeu os prefeitos das duas maiores cidades. Contudo, não seria razoável cobrar um desempenho semelhante, passados apenas dois anos da chegada ao Palácio dos Leões, e ainda mais com a onipresente espada de Dâmocles (leia-se, risco de cassação) pairando no ar.

Entretanto, o que importa sublinhar são os elementos de continuidade entre as duas facções oligárquicas, quais sejam, a “produção da maioria” pelo governo estadual, o modus operandi patrimonial, as “conversões” e “epifanias” oportunistas, o governismo inveterado dos políticos
tradicionais e clientelistas
(com sua pragmática sem cerimônia de “trocar de lado” ao sabor das circunstâncias).

3. A explosão da bomba: violência política e corrupção sistêmica

Contudo, se do ponto de vista analítico a reestruturação do poder oligárquico em favor do Condomínio foi o elemento definidor das eleições, o mesmo não pode ser dito do ângulo das relações sociais mais amplas. Pois, ao variarmos a perspectiva, o que salta aos olhos é o fato de que a crise intra-oligárquica provocou a explosão da bomba suja, em termos de uma maior visibilidade da corrupção praticada em todos os níveis (municipal e estadual) e em todas as esferas do poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como a exacerbação da violência política,
especialmente, mas não exclusivamente, nas eleições 2008
.

Esclarecendo desde já: NÃO estamos afirmando que a corrupção aumentou, ou que o governo Jackson seria mais corrupto que o de Roseana. Não temos um “corruptômetro” para fazer tal aferição. Afirmamos sim que a
VISIBILIDADE (ou seja, a percepção social) acerca da questão foi incrementada, em função das operações da Polícia Federal, da Correição feita pelo Conselho Nacional de Justiça no Judiciário estadual (8), das ações da sociedade civil organizada, das denúncias formuladas no processo eleitoral e depois veiculadas na mídia (como parte da própria disputa entre as facções adversárias). O mesmo raciocínio vale para a questão da EXACERBAÇÃO da violência.

A bomba suja sempre esteve presente enquanto dado estrutural, a crise foi apenas um agente catalisador da explosão, registrada através de acontecimentos ainda vivos na memória social. Entretanto, para efeito de registro histórico, passaremos a enumerá-los brevemente.

Em retrospectiva, pode-se afirmar que, nas últimas décadas, não houve eleições municipais com índices tão altos de violência. Da queima de urnas eletrônicas em Benedito Leite, até a juíza sendo “resgatada” de helicóptero em Penalva, os exemplos foram inúmeros: invasão e depredação da casa do exprefeito em Tutóia; denúncias de juízes e promotores “comprados”; troca-troca de prefeitos à base de decisões judiciais eivadas de suspeição; protestos após a cassação de registro de candidatos; realização de eleições suplementares.

E o caso mais rumoroso: Santa Luzia do Tide, onde houve a destruição dos prédios da Câmara Municipal, da Prefeitura e do Fórum por partidários do candidato Márcio Rodrigues (PDT), cassado pelo TSE. Na denúncia do Ministério Público, 64 pessoas foram acusadas de vandalismo. A oposição acusou o governador de incentivar a multidão, bem como o Comando da PM de se omitir diante dos fortes indícios de que distúrbios ocorreriam na cidade.

Obviamente, não pretendemos neste como nos demais casos estabelecer quem está certo ou errado, papel que, esperamos, a justiça possa cumprir. O que nos interessa é sublinhar o uso (ou a ameaça) da violência física (legítima ou não) como recurso político dos grupos em conflito.

Se, de um lado, não podemos deixar de reconhecer que a conjuntura de estadualização da disputa entre as facções oligárquicas exacerbou a violência, fazendo com que grupos derrotados seguissem tal caminho por se acreditar amparados e mesmo encorajados pelo governo; por outro lado, numa perspectiva histórica, a violência sempre caracterizou o jogo político no Maranhão, variando apenas de escala e intensidade. Desde a pistolagem e o “enterro de pessoas vivas” nos tempos de Victorino Freire; passando pelo uso da polícia para “fazer” eleições e amedrontar adversários; por deputados ligados ao
crime organizado; pela “fabricação de cadáveres” (o caso Reis Pacheco, inventado pelo grupo Sarney contra o então adversário Epitácio Cafeteira, em 1994); até o assassinato de três prefeitos nos últimos quatro anos (9).

Isto para falarmos apenas da política stricto sensu, e não mencionarmos outras dimensões, como a violência do latifúndio, dirigida contra trabalhadores rurais, agentes pastorais e militantes sociais. Embora não possamos deixar de citar, pelo que revelam da extensão da bomba suja, os casos de trabalho escravo denunciados pela CPT, envolvendo o deputado “Libertador” (!) Antônio Bacelar (PDT) e o juiz estadual Marcelo Baldochi (absolvido pelo Tribunal de Justiça, depois de denúncias feitas pelo CNJ).

Se o desencadear da violência física encontra-se condicionado a diversos fatores, já a violência simbólica é permanente, ensejando em si mesma, de forma latente, a possibilidade do recurso à força. Pois acusar, ridicularizar, desqualificar e demonizar das piores formas possíveis os adversários se constitui num traço histórico. Quem acompanha campanhas políticas sabe do “vale-tudo”: meter dedo no olho, inventar estórias, espalhar boatos sobre a vida pessoal e familiar (“corno”, “qualhira”, “mulherengo”, “chifreira”, “diambeiro”).

De Victorino Freire, por exemplo, as Oposições Coligadas afirmavam: “Invasor”, “Intruso”, “Monstro”, “aventureiro inescrupuloso”, “inimigo declarado do Maranhão”, “pirata”, “bárbaro”, “carrasco”, “assassino”, “tirano”, “déspota sem entranhas”, “terrorista”, “aberração”, “infecção”, “Caim”, “mafioso”, “gangster”, “tubarão”, “parasita”, [irmão] “Metralha”, “Senador Mentira Fresca”. Sobrepunham-se imagens metafóricas de diferentes discursos (político, médico, moral, policial, teológico), a compor uma figura grotesca, terrível, maquiavélica, ameaçadora – a personificação alegórica do próprio Mal.

O que seria recolhido numa pesquisa semelhante sobre Sarney? Afinal, o discurso “libertador” transmutou-o num ser onipotente, por trás de tudo o que acontece no Maranhão. Até para fazer a crítica, copiam-no, basta ver um lema dos “novos balaios” (“Meu voto é minha Lei, Nunca mais Sarney”), que modificou a 2ª estrofe do slogan de 1965 (“Meu voto é minha Lei, Governador Sarney”). Não seria este um caso freudiano de parricídio? Em que a rebelião dos filhos é uma homenagem ao patriarca, morto e transformado em totem,
ancestral e modelo a ser seguido por uma nova geração morta de “medalhões”?

E as eleições 2008? O que dizer do nível da campanha na capital? Nesta, a “desconstrução” (a palavra da moda) da candidatura Flávio Dino assumiu, além dos ataques pessoais, a forma do mais grosseiro e reacionário anticomunismo, assumido por setores das igrejas protestantes e da igreja católica. Nessa
atividade foi requentado o repertório das ditaduras de Vargas (1937-45) e dos militares (1964-85) para “justificar” e “legitimar” as prisões arbitrárias, a violação dos direitos humanos, a tortura e a morte dos opositores.

E a mídia? O que se publicou nos jornais e na internet durante a “guerra de blogs e e-mails” travada entre o Condomínio e o grupo Mirante? Cyberguerra, aliás, que lembrou bastante a “guerra de telegramas” da Greve de 1951, cujo ápice foi inventar um (inexistente) “Exército de Libertação” com 12 mil homens armados! Qual o “jornalismo” praticado por aqueles cuja única função foi fabricar e espalhar factóides a serviço de um grupo ou de outro, tentando pautar o debate sem nenhum lastro ético-político?

A questão da violência está intimamente relacionada ao segundo elemento constitutivo da bomba suja, a corrupção. Pois qual seria o objetivo de tão encarniçada luta, onde se mata e se morre, onde se mente e se demoniza, se não a disputa pelo controle e usufruto do “bezerro cevado do Erário”? Este é um jogo de soma zero, onde o vencedor leva tudo e o perdedor fica sem nada. Por isso, pudemos assistir na posse de Roseana tanta gente a salivar, afinal, foram seis anos de “vacas magras”, durante os quais tiveram que queimar as gorduras acumuladas; e, por outro lado, a voracidade dos que saíam do governo diante das incertezas futuras (inclusive tentando apagar os próprios rastros), no caso de não conseguirem ou poderem se “reconverter” ao credo do Dono do Mar.

Não temos aqui a intenção de fazer uma generalização leviana, mas sim apontar que parcela expressiva da “classe política” maranhense possui um horizonte limitado à conhecida Lei de Gérson (“o gostar de levar vantagem em tudo”). Desse modo, a corrupção sistêmica baseada num jogo de soma zero tem no aparelho de Estado seu lócus privilegiado, o que, por si só não constitui nenhuma novidade quando falamos da política brasileira, basta ver a lista de escândalos que abalam periodicamente a República.

A questão, contudo, apresenta facetas específicas no caso do Maranhão e de outras regiões periféricas do país, as quais estão relacionadas ao processo de modernização conservadora da economia. Pois, na mesma medida em que produziu uma hiper-concentração da riqueza nas mãos de uma minoria privilegiada de grandes empresas nacionais e multinacionais (no caso do Maranhão, o enclave exportador e o latifúndio), criou uma enorme população de pobres e miseráveis (cerca de 2/3 da população
maranhense) e transformou o Estado na melhor, senão a única, possibilidade de emprego, melhoria de vida e ascensão social (10).

É bem conhecido o fato de que a grande maioria dos municípios maranhenses sobrevive à custa dos repasses constitucionais, do pagamento de salários do funcionalismo público (quando são pagos!), do pagamento dos
aposentados e, mais recentemente, do pagamento dos programas sociais do governo federal (Bolsa-Família e outros).

Nessas condições, a política, antes de tudo, se transformou num negócio, ou, melhor dizendo, num “modo de vida” pessoal, familiar e de grupo, assegurando sua manutenção, ascensão e reprodução social. Se tal modelo de sociabilidade, assentado numa cultura política permissiva e patrimonialista (que privilegia os interesses privados), tem profundas raízes históricas, ele, por outro lado ganha vida nova e se atualiza nas condições da modernização conservadora conjugadas ao aumento substancial dos recursos administrados pelas prefeituras depois da Constituição de 1988.

Essa é a “galinha dos ovos de ouro” pelo controle da qual se mata e se morre, se engalfinhando as parcialidades num estado hobbesiano, de luta permanente de todos contra todos: de compra de votos e de clientelismo; de suborno de juízes e Tribunais de Contas; de agiotas e financiadores de campanha
que controlam administrações; do nepotismo e empreguismo; dos desvios de verbas em conluio com escritórios de contabilidade e empresas; de convênios com divisão do bolo com deputados e agentes estaduais.

Essa é a “escola” cujo ABC se inicia com a conjugação em todos os modos, tempos e pessoas do verbo latino Rapio, “porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse” (padre Antônio Vieira, Sermão do Bom Ladrão, 1655), traduzido por um prefeito reeleito como: “Mais quatro anos mamando!”. Esse é o mundo das quadrilhas e máfias, substituindo a política e agindo impunemente em todos (ou quase) os 217 municípios do Maranhão, as quais começam a ser investigadas nas Operações
Rapina I, II e III da Polícia Federal, porque no âmbito estadual nada (ou quase nada) se faz, numa cumplicidade e inoperância com óbvias raízes (11).

Essa é a “poupança” a partir da qual se constroem patrimônios (casas, apartamentos, fazendas, lanchas); se compram os carros do ano e da moda; se constituem “empresários bem sucedidos” do comércio, de postos de gasolina, hospitais, escolas, hotéis, concessionárias. Corrupção sistêmica que produz e reproduz a miséria social e que encontra em São Luiz seu espelho invertido, pois alimentou o “boom” imobiliário dos condomínios e apartamentos de luxo destinados, em vários casos, à “lavagem de dinheiro” (segundo as investigações da PF). Contrapondo, num quadro brutal e sem pudor, a opulência verticalizada e
artificial da “área nobre” da capital à pobreza estrutural da população.

Esse é o universo do já citado “governismo”, sem ideologia e pragmático, onde o único partido real é o PBS, o Partido da Bomba Suja, cujo lema é: “O PBS fede, mas tem dinheiro pra comprar perfume”. Partido que, nos tempos de hegemonia indisputada do clã Sarney, reunia em torno da oligarquia todos os grupos locais, com poucas exceções; mas que, em tempos de bipolarização, viu muitas de suas parcialidades “converterem-se” à causa da “Libertação”, tendo em vista possíveis dividendos políticos e econômicos.

Essa, portanto, em linhas gerais, é a base concreta da política municipal, sobre a qual se edifica a estrutura oligárquica de poder, ambas interdependentes entre si. Essa é a base de sustentação interna da família Sarney, sobre a qual também atuou a dissidência de José Reinaldo (que compartilhava da mesma cultura política), com farta distribuição de convênios, de modo a incorporar um segmento do Partido da Bomba Suja ao projeto do anti-sarneísmo. Pois, conforme apontamos no boletim do ano passado, “num cálculo grosseiro e talvez subestimado, o governo estadual mobilizou perto de 20% do eleitorado, por meios clientelistas variados que possibilitaram a cooptação e a adesão de lideranças e cabos eleitorais do interior ao conjunto de seus candidatos... Assim, a participação da ‘máquina’ do Palácio dos Leões foi uma das peças-chave na vitória da ‘Frente de Libertação’ em 2006”.

Não por acaso, o processo de cassação de Jackson Lago por abuso de poder político e econômico foi assentado na investigação e denúncia dos esquemas montados pelo governo José Reinaldo visando assegurar a sua sucessão. Pode-se até considerar injusta e politicamente motivada a decisão do TSE, pois sustentada em provas discutíveis e numa interpretação juridicamente controversa, mas não é possível negar que a acusação focou no “calcanhar de Aquiles” de qualquer grupo patrimonial, o uso da máquina pública, que de fato
ocorreu. Em 2006, como em 2008 e todas as eleições anteriores.

Dessa maneira, os estilhaços da bomba suja, espalhados por todos os cantos e recantos da estrutura política e judiciária do Maranhão, atingiram de maneira frontal e fatal a fração oligárquica do Condomínio, gerando como conseqüência o legal, porém ilegítimo, retorno de Roseana Sarney ao poder.

4. Do naufrágio da “Nau Libertária” ao governo da “Caravana Cigana”. Ou, de como, mais uma vez, “não era a vez do povo”.

Apesar da heterogeneidade de forças que lhe deram sustentação, a vitória da “Frente de Libertação do Maranhão” em 29 de outubro de 2006 representou um passo à frente no cenário político maranhense, em função do voto plebiscitário de milhares de maranhenses, que exprimiram nas urnas sua insatisfação com a hegemonia da oligarquia Sarney. Voto plebiscitário com maior expressão nos dois maiores colégios eleitorais, São Luís e Imperatriz, onde Jackson Lago obteve 66,6% e 76,8% dos votos, respectivamente. Este era o principal capital político do novo governo, depositário das lutas históricas dos movimentos sociais e das esperanças da população por transformações e melhores condições de vida e trabalho.

Pressionando em sentido contrário, no interior do próprio Condomínio que se formava, estavam as forças conservadoras e patrimoniais, aglutinadas pela dissidência oligárquica e interessadas em sua ascensão e reprodução política a partir da ocupação de postos no Estado.

A crônica do governo Jackson, assim, consiste na narrativa da vitória do Partido da Bomba Suja sobre as esperanças populares, que foram se dissipando e com elas a popularidade do governo, que demonstrava paulatinamente seu caráter conservador, ao mesmo tempo em que mantinha o discurso de “Libertação” em nome do anti-sarneísmo e de um “governo democrático e popular” (apenas no slogan de que “Agora é a vez do povo”).

Contudo, as idéias não correspondiam aos fatos. Pois o governo começou sob o signo da “Lei do Cão”, retirando direitos trabalhistas e atacando as diversas categorias do funcionalismo público, que responderam com mobilizações e greves. Na continuação, viu-se a farra de nomeações (atingindo alguns milhares de cargos) e de nepotismo (envolvendo as famílias Lago e Moreira Lima, da primeira dama). A seguir, as denúncias de corrupção, com a deflagração da Operação Navalha, seguidas de outros casos. A prometida
auditoria nas contas públicas sumiu do mapa à proporção em que se preservava a “ética predatória” e clientelista na administração do Estado.

Da mesma forma, o governo nunca foi capaz de elaborar uma agenda positiva de mudanças para discutir com a sociedade. O debate sobre alternativas de desenvolvimento com inclusão social foi relegado a segundo ou terceiro plano, com a subordinação do governo à agenda da modernização conservadora (no processo de implantação da Termelétrica MMX, por exemplo). Já a realização dos chamados Fóruns regionais (Alto Turi, Baixo Parnaíba, sul e região tocantina), uma iniciativa interessante envolvendo governo e sociedade civil, formulou cartas e documentos com reivindicações que, em sua maioria, nunca foram atendidas, ficando na gaveta de um burocrata qualquer.

De fato, o governo Jackson Lago foi bem sucedido em apenas uma coisa: garantir a vitória do Condomínio nas eleições municipais 2008, a partir do modus operandi patrimonial. O cronograma de obras iniciadas pelo governo (estradas, a ponte em Imperatriz, o hospital em Presidente Dutra e outras) se subordinou, em linhas gerais, à lógica da disputa eleitoral, com o cumprimento de promessas de campanha ou de acordos com lideranças locais.

Por outro lado, a oligarquia Sarney, no mesmo período, se concentrou em fazer oposição ao governo através do Sistema Mirante, procurando acirrar suas contradições internas e desestabilizá-lo; reforçar a presença junto ao governo Lula (com Lobão no Ministério das Minas e Energia e o anúncio da implantação da Refinaria da Petrobrás); consolidar a posição dentro do PMDB e do Senado (tornando-se parceiro do projeto de aliança PT / PMDB para lançar Dilma Rousseff); e preparar seu retorno ao poder no Maranhão, pela via judiciária
(como veio a suceder) ou pela via eleitoral em 2010 (se fracassasse a primeira alternativa). Em síntese: reorganizar-se a partir do conjunto de relações mantidas no interior do aparelho de Estado, investindo, por exemplo, sua influência para tentar acelerar a tramitação do processo de cassação.

A chamada “judicialização da política” teve na cassação mais um exemplo, que não pode ser desligado do clima geral de ameaças ao Estado Democrático de Direito no Brasil, pois “parece inegável a existência de uma rearticulação antidemocrática, que se insinua nos procedimentos jurídicos para subverter a legalidade e a verdade” (“Transtorno bipolar”, Carta Pastoral de Dom Xavier Gilles, de 13 de abril passado). Exacerbação conservadora das atribuições do Poder Judiciário (não submetido a controle social e sujeito às nomeações do Poder Executivo) que abrange a esfera política (com o golpismo
que pune adversários e isenta aliados, “premiados” como Roseana Sarney com o retorno ilegítimo ao governo estadual), a judicial (aposentando o juiz que defende os direitos humanos e inocentando o juiz escravocrata) e a social (criminalizando os movimentos sociais, enquanto privilegia empresários).

Entretanto, mesmo diante das evidências do “golpe de Sarney”, a população não saiu às ruas para defender a democracia e seu voto plebiscitário, porque constatou desiludida e desesperançada que o governo Jackson Lago também não correspondia às suas expectativas. A tentativa de resistência do movimento “Balaiada” (financiado pelo governo, com o empréstimo da grife do MST e de outros movimentos sociais) não podia esconder a realidade de um governo que não respondeu à altura os desafios históricos, sendo subordinado aos interesses patrimoniais e oligárquicos do Condomínio.

A defesa do “governo democrático e popular” só convenceu uma parte da mídia nacional que, conhecedora do espécime de “medalhão” Sarney, “acreditou” que seus adversários políticos seriam melhores. Não, meus Caros Amigos, o governo Jackson Lago não foi nenhum “mar de rosas” a querer transformar o Maranhão. Suas “medidas populares” de fim de governo (aumento do funcionalismo, concessão de bolsas para famílias pobres) foram apenas atos patéticos de desespero para tentar recuperar uma legitimidade e um capital
simbólico de base popular que já estavam irremediavelmente perdidos.

Vista deste ângulo, a resistência frustrada desvela o fundo falso do discurso “anti-oligárquico de Libertação”, que nunca foi além de críticas pessoais e morais ao comportamento do grupo Sarney, sendo incapaz de formular uma crítica estrutural ao sistema oligárquico. Tanto isso, que o próprio Sarney abusou desse discurso para se eleger governador em 1965 e iniciar a substituição da oligarquia de Victorino Freire, trazendo consigo os movimentos sociais da época. O discurso da “Libertação” possui um caráter parricida: quer apenas substituir o Totem-Sarney por algum de seus filhos, da mesma forma como Sarney substituiu o Totem-Victorino por si mesmo.

É até compreensível, em parte, que alguns movimentos sociais tenham saído em defesa do ex-governador e da democracia, em vista de sua presença anterior no governo, com a indicação de nomes para secretarias de cunho social e a contribuição na formulação de políticas públicas específicas e pontuais. Acrescido, no caso do MST, da agenda internacionalista da Via Campesina, de defesa do governo Hugo Chávez na Venezuela (que veio ao Maranhão trazido pelo movimento, com a celebração de vários convênios).

O que não é compreensível é que estes movimentos tenham “fechado os olhos” às mazelas do governo Jackson Lago, aceitando o discurso vazio da “Libertação” e tentando pintar no governo um caráter “democrático e popular” que nunca teve. Rebaixando, portanto, o patamar histórico de lutas e
reivindicações dos movimentos sociais pela democratização no Brasil, com propostas de participação popular, ampliação de direitos, controle social dos poderes e combate à corrupção eleitoral (Lei 9840)
. Em quais desses pontos seria possível defender o governo do Condomínio?

Não perceberam que a “guinada à esquerda” da “Frente de Libertação” só existiu na retórica e na verborragia das lideranças, sendo um mecanismo pragmático de defesa diante do avanço do processo de cassação, visando atrair a atenção do país para o julgamento do TSE e, ao mesmo tempo, capitalizar alguma simpatia popular para o governo “vítima da conspiração de Sarney” (já se preparando para as eleições 2010).

E assim, deu-se o fim melancólico do governo Jackson Lago. Quanto ao governo ilegítimo de Roseana, nada de novo no front. O que se viu na composição do secretariado foi o retorno da outra banda do Partido da Bomba Suja, com a nomeação de aliados fiéis (com o habitual despudor da indicação de nomes sem qualquer relevância ou competência), numa preparação “ao vivaço” da “Caravana Cigana” com que pretende vencer as eleições estaduais. O único cuidado visível foi afastar (formalmente) do
governo o ex-Grão-Vizir Jorge Murad, pivô do escândalo Lunus e apontado como um dos responsáveis pelos problemas do grupo.

No mais, a velha oligarquia adotou o sábio ensinamento bíblico de receber de braços e cofres abertos seus “filhos pródigos”, além das conhecidas táticas de cooptação política, trazendo o ex-prefeito Tadeu Palácio (“reconverso” de primeira hora), ademais dos convites ao PC do B (recusado) e à Articulação do
PT (recusado em termos)(12). Com isso, se revelou a estratégia do grupo Sarney de mais uma vez “se colar” ao governo Lula, tentando editar no Maranhão em 2010 a mesma dobradinha PT / PMDB que defende em nível nacional. O tempo confirmará ou não essa possibilidade.

De maneira que os cenários para 2010 apontam no sentido da continuidade da bipolarização entre as duas facções oligárquicas, cada qual pretendendo atrair para si os partidos de centro-esquerda e os movimentos sociais (ou no mínimo, neutralizá-los).

O enigma é se esses setores conseguirão estabelecer um consenso mínimo em torno de um projeto de mudanças para o Maranhão, constituindo um pólo alternativo. Ou se repetirão, uma vez mais, sua eterna luta fraticida, bem como seu papel histórico de coadjuvantes e penduricalhos das coalizões oligárquicas, assumindo de vez seu desejo de cooptação, sua patrimonialização no PBS e o distanciamento das lutas sociais.

E assim, entre náufragas “Naus Libertárias” e dançantes “Caravanas Ciganas”, a bomba suja explodiu no colo daqueles que, em nome do combate à oligarquia, reproduziram no cotidiano a mesma cultura política e o mesmo modus operandi que pretensamente visavam suprimir, desvelando seu objetivo inconfesso de apenas reestruturar o sistema patrimonialista de dominação, modificando personagens, mas não o enredo, dessa farsa política que se repete ininterruptamente desde fins do século XIX.

E, por favor, não me peçam mais para escolher um lado, pois “Quem fala em flor não diz tudo. Quem me fala em dor diz demais”. Por fim, para (não) compartilhar da (irônica) mudez do poeta, posso apenas afirmar, em caráter pessoal, que, em relação às duas facções oligárquicas, às duas bandas do Partido da Bomba Suja, a única atitude ética e política possível é puxar a descarga! Ou jogar no ventilador!

ANEXO: Roteiros para “conversões” e “reconversões”
1. Épico cristão, estilo Ben Hur, mas vale Alexandra D’Ark:

Um belo dia, depois de trinta e tantos anos servindo fielmente o grupo Sarney, no interior do qual
construíra toda sua trajetória política e profissional, o governador José Reinaldo Tavares despertou
de sonhos perturbadores, se olhou no espelho da verdade e descobriu que “existia uma oligarquia”
(isso mesmo, essa coisa terrível!) no Maranhão. Nesse instante, ele transformou-se em
“Libertador” e passou a pregar e defender a palavra nova!

2. Ficção científica:

Numa tarde chuvosa, ao sair para passear, Edson Vidigal (ou Francisco Coelho, ou Humberto
Coutinho, ou Roberto Rocha, ou João Castelo, ou, ou... escolha o personagem!) viu abrirem-se os
céus e uma luz descer sobre si. Entre confuso e aturdido, verificou se tratar de um OVNI querendo
abduzi-lo e trazendo a notícia, sensacional e ao mesmo tempo assustadora, de que “existia uma
oligarquia” em seu planeta natal. Após profundo exame de consciência, sagrou-se cavaleiro Jedi e
decidiu que dedicaria sua vida à causa de livrar a galáxia Maranhão desse demoníaco lado sombrio
da Força, embarcando na “Nau Libertária”. Cuidado Darth Lord Sarneyous!

3. Filme de época [teoria do direito divino dos reis, pela qual o monarca nunca poderia
estar errado, pois representava a Vontade de Deus]:

Numa noite de insônia e preocupação com o “golpe do 18 Brumário”, em meio a debates
acalorados sobre a resistência revolucionária, um grupo de “novos balaios” chegou à conclusão,
assombrosa e nunca antes sequer suspeitada, de que o governo de “Libertação” chegara àquela
situação também por seus próprios erros e equívocos. “–Mas quem poderia tê-los cometido?”
Alguém perguntou. “–Nunca o Suserano! Jamais o Suserano!” Bradou a tropa perfilada. Mas
quem então? Ora, “–A culpa é do 1º Ministro Aderson Lago e do Grão-Vizir Aziz! À guilhotina
com eles, esses vis conselheiros! Nunca serão! Jamais serão!” Com a verdade restabelecida em sua
plenitude, os “soldados da Liberté, Égalité, Fraternité” puderam enfim dormir sossegados.

4. Filme B de terror:

Na manhã de 17 de abril de 2009, Bia Aroso (prefeita de Paço do Arrepiarrr, da Frente Ampla de
Oposição - PDT / PT / PCB / PC do B) acordou com pesadelos, ao descobrir estarrecida que Sarney sempre desejou o melhor para o Maranhão, e não o “velho escroto” Jack Krueger. Imediatamente mandou fazer faixas comemorativas, mobilizou seus dependentes e foi celebrar a posse da filha do patriarca, a “guerreira”, quase morta, quase viva, que voltava ao poder nos braços do TSE para construir um “novo velho Maranhão”! Afinal de contas, “Rei morto, Rei posto” e a “corte de defuntos deixava suas covas”.

5. Sessão da tarde, estilo Mágico de OZ ou Alice no País das Maravilhas:

Qual milagre ou coincidência divina, 12 deputados “Libertadores” mal dormiram com os mesmos
pesadelos, num toque ininterrupto de matracas e tambores, somente silenciados depois de uma
conversa com o “boneco de Olinda”. Eis o diálogo: “–Pecamos contra ti, a Branca e o Dono do
Mar, já não somos dignos”. Mas o senhor restaurado falou mansamente: “–Trazei o bezerro
cevado do Erário, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos... Porque nossas bases estavam mortas e
reviveram, tinham-se perdido, e foram achadas”. E todos começaram a alegrar-se e a aclamar em
voz alta: “–O Rei de Paus está morto, viva a Rainha de Espadas!”.

6. Filme de artes marciais:

O Império contra-ataca! O Mosteiro dos Leões, em Shangri-la, está cercado pelas tropas de Lorde
Sar Ni, comandadas pelo implacável general Eros de Grau, um lutador de sumô de barba espessa e
caneta afiada. Entre os sitiados, há indefinição sobre o destino do Dalai Lago, se não sairá do
templo “caminhando com suas próprias pernas”, se fará uma greve de fome (sugestão do líder
tribal Lugo Chá Vez), ou se só sairá morto mesmo (opinião do faquir de Saco das Almas).
Enquanto monges radicais propõem uma crise institucional e a resistência armada, com a adoção
do estilo kung fu panda MST (o próprio mestre Stédiling Shifu veio ensiná-lo!); outros monges,
adeptos da não-violência, sugerem atear fogo às próprias vestes para atrair a atenção internacional
contra o “dinossauro semifeudal”. Contudo, ao mirarem-se no exemplo daquele homem do Tibet,
o sábio Botá pá muê, ninguém se ofereceu para ser o primeiro da lista de auto-sacrifícios!

7. Invente seu próprio filme!


* Mestre em História (UNICAMP), Professor do Depto. de História da UFMA.

(1) Por Condomínio designamos a heterogeneidade das forças políticas que apoiaram a Frente deLibertação do Maranhão, elegendo Jackson Lago em 2006, num leque que abrangeu da direita atéa centro-esquerda, com forte presença de dissidentes da oligarquia Sarney, com destaque para oex-governador José Reinaldo Tavares. Hegemonizado pelo eixo conservador PDT / PSDB, oCondomínio foi apoiado ainda por PT / PSB / PC do B / PRB, tendo como único ponto de unificaçãoo anti-sarneísmo.

(2) Vejamos a evolução do PDT: tendo elegido apenas 10 prefeitos em 2004, passou a contar com 56tão logo Jackson Lago assumiu o poder em 2007, elegendo 65 prefeitos “Libertadores” em 2008(30% do total). Com isso, tornou-se a maior seção do país, superando o PDT gaúcho (63prefeituras), onde existe uma forte tradição trabalhista.3 O PSDB passou de 9 prefeituras em 2004 para 25 em 2008, com o destaque de passar agovernar os dois maiores colégios: São Luiz (quase 1 milhão de habitantes) e Imperatriz (236 milhabitantes). Juntos, PDT e PSDB passaram a administrar 41,5% das prefeituras (de um total de217) e 55% da população do estado.

(4) Curiosamente, na cidade tocantina, Jackson Lago conseguiu, com sucesso, fazer o que antes Roseana Sarney tentara inutilmente na capital: transformar o governador em prefeito do município, com o investimento em obras públicas que foram fundamentais para assegurar a vitória do deputado federal Sebastião Madeira, pela “Frente de Libertação de Imperatriz” (PSDB / PDT /PPS / PRB / PTC / PSB / PSDC). A principal dessas obras, a ponte sobre o rio Tocantins, foi “inaugurada” incompleta e às pressas logo após a cassação do ex-governador, sendo batizada de “Ponte da Liberdade”.(5) Na capital, as eleições escaparam parcialmente à lógica estadual (pró-Sarney x anti-Sarney), sendo caracterizada também pela polarização nacional PT x PSDB. Assinalando o descrédito histórico da oligarquia Sarney em São Luiz, os quatro candidatos do grupo conseguiram obter, juntos, apenas 7,82% dos votos no 1o turno. (6) Com exceção da pequena, mas estratégica, Barreirinhas (50 mil habitantes), onde a reeleição do “Doutor” Miltinho encontra-se sub judice, a maior cidade governada pelo PT (com 08 prefeitos) é Turiaçu (33 mil habitantes). O PSB, também com 08 prefeituras, administra São Bento (38 mil habitantes). Já o PC do B governa apenas a lilliputiana cidade de Afonso Cunha, com 5.834 habitantes.

(7) Com os votos anulados, José Reinaldo venceu as eleições em 1o turno, com 51% dos votos, contra 42,5% de Jackson Lago; se os votos de Ricardo Murad fossem considerados válidos, a eleição iria para 2o turno, pois José Reinaldo restaria com apenas 48%. Não foi a primeira vez que o tribunal decidiu a favor da oligarquia. Em 1994, o TRE teve papel decisivo na 1a eleição de Roseana Sarney como governadora. Essas eleições foram marcadas por fraudes na apuração (95% das urnas), com alteração dos brancos e nulos em favor dos candidatos da coligação “Frente Popular” (PFL / PMDB), além do abuso de poder político e econômico. O episódio teve repercussão nacional: “O TRE maranhense não presidiu eleição, presidiu fraude” (Jânio de Freitas, “Fraude impune”, Folha de São Paulo, 28.06.95).

(8) Tanto a ação da PF, quanto a do CNJ, podem ser analisadas como avanços democratizantes dasociedade brasileira, impactando positivamente o Maranhão. Nos limites deste artigo nãoanalisaremos a crise do judiciário estadual, embora a consideremos um elemento relevante dacrise política mais ampla.

(9) Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, foram assassinados 11 prefeitos e 3 vices no Brasil durante o quadriênio 2005-8, com destaque para o Maranhão, onde foram mortos: JoãoLeocádio Borges (Buriti Bravo, março de 2005), Raimundo Bartolomeu Santos, o “Bertim”(Presidente Vargas, março de 2007), Hitler Alves Costa, o “Ita” (Ribamar Fiquene, julho de 2007).

(10) Para não sermos redundantes e por economia de espaço, trataremos aqui apenas da políticamunicipal, embora as conclusões possam ser generalizadas, com outros detalhes e algumas ressalvas, à política estadual. Mutatis mutandis.

(11) Dados os já extensos limites deste artigo, não temos como detalhar essas operações de combateà corrupção. Da mesma forma, a visibilidade da corrupção no âmbito estadual se deu a partir dasOperações Navalha (maio de 2007) e Boi Barrica (2008). A primeira investigando os esquemasligados aos ex-governadores José Reinaldo e Jackson Lago, além do sarneísta Silas Rondeau (paracitar os principais nomes); a segunda, os esquemas de Fernando Sarney. Poderíamos citar ainda asdenúncias sobre a Operação Ópera Prima, envolvendo o ex-chefe da Casa Civil, Aderson Lago.

(12) O acordo começou a ser costurado com a participação da direção nacional do PT. Contudo,encontrou resistências internas de duas ordens: em primeiro lugar, na Direção Estadual, cuja alamajoritária, aliada do Condomínio, desautorizou a participação de petistas no governo Roseana;em segundo, na própria corrente Articulação, que se viu dividida internamente. De concreto,resultou um “meio-acordo”, pelo qual Washington Oliveira assumiu uma vaga de deputado federale José Antônio Heluy assumiu, “em caráter pessoal”, uma secretaria de Estado (num gesto que pareceu a muitos um matricídio em relação à trajetória da deputada estadual Helena Heluy). Noentanto, muita água ainda vai rolar nessa mais nova crise do PT maranhense... E o espectro dac ooptação pelo grupo Sarney muito provavelmente ainda atingirá esses e outros setores.
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