(*) Franklin Douglas
Há 23 anos, Neiva Moreira escreveu na introdução do seu livro-depoimento a José Louzeiro:
“Resisti, sempre, às sugestões para que prestasse este depoimento. (...) havia um motivo subjetivo, determinado pela carga de superstições nordestinas que não me abandonam: em geral, quando se escrevem as memórias, ou se deseja dar por encerrada a atividade ou se ‘está para o gato’, como diriam os amigos do rio da Prata. No meu caso, não é isso. A aposentadoria não está à vista e confio na longevidade dos sertanejos do Parnaíba (...)”
Neiva tinha 71 anos quando registrou essa sua disposição para a vida. Viveu até os 94 anos, quando partiu no último dia 10 de maio.
E foi essa disposição para viver que levou Neiva a tantos tempos. Isto porque sim, Neiva foi, sobretudo, um homem de seu tempo.
O tempo do menino que sobreviveu às intempéries do agreste do Médio Parnaíba, nascido na Nova Iorque, não a vitrine do capitalismo, mas a fundada por um pastor norte-americano nos grotões do sertão maranhense.
O tempo da política que valia pela força da coerência e da palavra empenhada pelo fio do bigode.
O tempo da agitação popular, das ruas ocupadas em greve contra a fraude eleitoral, contra a oligarquia de plantão no poder.
O tempo do jornalismo de opção pelos oprimidos, em tantos textos registrados em seu Jornal do Povo e em sua revista Cadernos do Terceiro Mundo.
O tempo do sonho socialista, que marcou sua opção radical pela democracia, pela emancipação dos povos latinos e africanos.
O tempo do trabalhismo que foi forçado a exilar-se do país no período da Ditadura Militar, mas que voltou ao Brasil para: lutar pelas Diretas Já; vencer as eleições de 1982, com Brizola para governador do Rio de Janeiro, contra a fraude eleitoral patrocinada pela Rede Globo de Roberto Marinho; ganhar com Jackson Lago a Prefeitura de São Luís, em 1988, pela “União da Ilha”, contra as forças de Sarney (na Presidência da República) e Cafeteira (no Governo do Estado); fazer a campanha do Brizola na primeira eleição direta para presidente da República pós-Ditadura, em 1989, e se engajar no “Lula-lá” do sapo barbudo, no segundo turno eleitoral; derrotar, pela primeira vez em 40 anos, a oligarquia Sarney, com a Frente de Libertação do Maranhão, em 2006, com Jackson-governador; participar da “Balaiada de 2009” para enfrentar o golpe judiciário de abril... Neiva esteve presente nos momentos decisivos das lutas políticas do mundo, do Brasil e do Maranhão do século XX.
Por todos considerado o mais emocionante discurso de homenagem na despedida de Neiva Moreira, na sede do PDT, foi de Haroldo Saboia a lembrança de vários fatos da vida do combatente trabalhista. Destaco três:
Primeiro – ao voltar do exílio, aos 61 anos. Quando todos pensariam em parar, Neiva reinventou sua trajetória histórica e se reinseriu de tal forma na vida política, que, na Câmara dos Deputados ou na direção nacional do PDT, manteve intensa atuação.
Segundo – do governo Brizola, no Rio, Neiva foi secretário de Comunicação... Saiu pobre; foi ainda presidente do Banco Estadual de Desenvolvimento... Também saiu pobre...
Terceiro – Neiva Moreira, quando regressou do exílio imposto pelos generais, ao chegar ao Maranhão, no dia 17 de outubro de 1979, deparou-se com duas multidões: a polícia nas ruas e o povo na praça para recebê-lo.
Era assim Neiva: homem de paixão pela vida, pelo jornalismo, pela política; pelo qual não se passava em vão: ou era admirado ou era odiado.
A moçada de hoje, coisa que não chego a condenar ante a justificativa de que é uma boa maneira de seduzi-la, inicia suas leituras com coisas do tipo sobre magia (Harry Potter), vampiros (Crepúsculo) ou autoajuda, como nos livros de Paulo Coelho... Por volta de meus 12 ou 13 anos, tomei gosto pela leitura, dentre outros, pelo contato de livros como o “Pilão da Madrugada – Neiva Moreira, um depoimento a José Louzeiro”. Foi ali que conheci Neiva e parte da História do Maranhão.
A única vez que estive pessoalmente com Neiva, quando apertei sua mão e, mesmo sem poder ser visto – ele já tinha perdido a visão, aos 91 anos –, fiquei como um menino ante uma lenda de infância, mal balbuciei... Neiva discorria da necessidade de colocar o povo nas ruas, para resistir ao golpe da oligarquia que apearia Jackson do poder. Pensei comigo mesmo quão jovem e rebelde ainda era o Neiva, ainda que quase centenário. Minha admiração por ele se reafirmara.
Na entrevista a Louzeiro, Neiva relembrou:
“Quando eu tinha 15 anos, [Dona Noca] levou-me de Barão [de Grajaú] a [São João dos] Patos – viagem de dois dias em lombo de burro, que hoje se faz em duas horas de carro (...)
Aliás, nessa viagem no comboio de burros, deparei-me pela primeira vez com a generosidade pura, a solidariedade espontânea e desinteressada. No meio da chapada desabitada, ouvi longínquo batido de um pilão, varando a madrugada.
Um tropeiro explicou-me o mistério. Três irmãs velhas, a intervalos curtos, faziam, noite após noite, como se pilassem arroz, para algum viajante extraviado, ouvindo aqueles toques, soubesse que ali havia uma casa, onde poderia orientar-se”.
Ao que José Louzeiro interpretou:
“Pode-se comparar [a atuação das três irmãs ao socar o pilão] à [ação] dos que, dedicados à luta por um mundo melhor e uma sociedade menos injusta e conflitiva, estão sempre socando o pilão, indiferente dos resultados imediatos, às recompensas materiais e mesmo ao reconhecimento. Não são movidos por outro interesse que não seja o de contribuir para mostrar um caminho a quem esteja desorientado (...) ou mesmo, sem a esperança de que avance no rumo certo, ao encontro do amanhecer.”
De algum lugar, vá grande Neiva, junte-se aos bons e continue a socar o pilão da madrugada, da esperança por um mundo melhor, de um tal “socialismo moreno”, como você, Brizola e Darcy Ribeiro costumavam falar. Estaremos por aqui, sempre dispostos a ouvir!
(*) Franklin Douglas - jornalista e professor, escreve para o Jornal Pequeno aos domingos, quinzenalmente. Artigo publicado no Jornal Pequeno (edição 13/05/2012, página 16)
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