O que diz o relatório do CNJ que escancarou a barbárie nos presídios do Maranhão
Celas sem grades, crimes sexuais, decapitações. Em apenas oito páginas, o relatório do Conselho Nacional de Justiça traça um panorama de selvageria no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís
As cenas são fortes. Em um vídeo publicado nesta terça-feira (7) no site do jornal Folha de S. Paulo, presos do Complexo Presidiário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, ajeitam o foco de uma câmera para registrar a decapitação de três detentos rivais. Em meio a muito sangue, os detentos expõem as cabeças como troféus. As imagens de selvageria e barbárie são chocantes. Porém, segundo um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), casos como esse são rotineiros em Pedrinhas, uma penitenciária sob controle absoluto do crime organizado. Só em 2013, 62 presos foram assassinados dentro da penitenciária.
O relatório do CNJ escancarou a rotina sangrenta e as dezenas de violações de direitos humanos que ocorrem em Pedrinhas. As denúncias do CNJ forçaram uma intervenção policial no presídio, que resultou na apreensão de celulares e armamentos. Em represália, os criminosos ordenaram uma série de ataques a ônibus em São Luís. Em um deles, na sexta-feira (3), a Ana Clara Santos Sousa, de 6 anos, foi atingida pelo fogo. Internada com 95% do corpo com queimaduras, acabou morrendo na segunda-feira (6). A mãe de Ana Clara e a irmã, de 1 ano e 5 meses, ainda estão internadas.
O texto do CJN, assinado pelo juiz Douglas de Melo Martins, foi encaminhado no dia 27 de dezembro ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa. São apenas oito páginas. Mas o retrato traçado pelo juiz é desesperador.
A guerra de facções
A origem das facções que controlam o sistema prisional maranhense é consequência da falta de presídios no interior do Estado. Segundo o CNJ, há apenas um presídio no Maranhão, o Complexo Penitenciário de Pedrinhas, que recebe a maioria dos detentos provisórios e definitivos do Estado. No interior, há apenas cadeias e delegacias. Há presos de municípios que ficam a mais de 800 quilômetros da capital cumprindo pena em Pedrinhas. O CNJ identificou uma divisão entre os detentos do interior e os da capital.
As facções que hoje mandam no presídio surgiram em 2002. Até aquele ano, as mortes que ocorriam eram sempre de detentos do interior. Após a rebelião, eles se organizaram na facção dos "baixadeiros", que depois passou a se chamar Primeiro Comando do Maranhão, com o objetivo de se defender. Uma dissidência gerou outra facção entre os detentos do interior, chamada de Anjos da Morte. Em resposta, os detentos da capital também se uniram em uma facção, chamada Bonde dos 40 – o grupo mais violento que atua em Pedrinhas.
As facções controlam toda a rotina da prisão, a ponto de agentes carcerários terem sido obrigados a pedir autorização dos líderes das gangues para que a inspeção do CNJ pudesse ocorrer. Os presos até mesmo vetaram a inspeção em data de visita íntima, alegando que seria "um ato de desrespeito". Segundo agentes prisionais, há inclusive uma espécie de recrutamento. No momento em que novos presos ingressam no complexo penitenciário, são obrigados a escolher uma facção. Ficar de fora do crime organizado não é uma opção.
Celas sem grades
As sucessivas rebeliões e a guerra de facções transformou as estruturas do presídio, que já eram precárias. Em uma das unidades do complexo, o Centro de Detenção Provisória, simplesmente não há grades nas celas. Todos os presos circulam sem qualquer restrição.
Crimes sexuais
Por exigência dos líderes das facções, a administração do presídio autorizou que as visitas íntimas acontecessem no meio das celas. Nos dias de visita íntima, todas as celas são abertas e as mulheres dos presos são colocadas, juntas, no pavilhão. Os encontros íntimos ocorrem em ambiente coletivo. "Essa circunstância facilita o abuso sexual praticado contra companheiras dos presos sem posto de comando nos pavilhões", diz o relatório. Detentos de menor influência nas facções são obrigados a entregar suas mulheres a outros presos, sob ameaças de morte. O CNJ suspeita que algumas das mortes de presos em 2013 estejam relacionadas com crimes sexuais. Uma das mais recentes, por exemplo, ocorreu em dia de visita íntima, possivelmente porque um dos detentos tentou impedir que sua companheira fosse estuprada.
Requintes de crueldade
A selvageria é a norma no Complexo Penitenciário de Pedrinhas. E não é de agora. O CNJ registra casos de decapitação há anos. Em 2010, pelo menos três presos foram decapitados em uma rebelião. Em 2011, outros três. Em dezembro de 2013, dias antes da inspeção do CNJ, outros três presos foram decapitados, como mostram as fortes imagens do vídeo divulgado pela Folha de S. Paulo.
Tortura e assassinato com requintes de crueldade também são comuns. "A extrema violência é a marca principal das facções que dominam o sistema prisional maranhense. Um vídeo enviado pelo presidente do sindicato dos agentes penitenciários mostra um preso vivo com a pele do membro inferior dissecada, expondo músculo, tendões, vasos e ossos, tudo isso antes de ser morto nas dependências do Complexo Penitenciário de Pedrinhas", diz o relatório.
Extermínio de doentes mentais
Durante a inspeção, o CNJ também encontrou doentes mentais cumprindo medidas de segurança no presídio. Segundo o relatório, como não há vagas no sistema de saúde do Maranhão, o Estado está encaminhando os doentes mentais para o sistema prisional. "Este fato por si só já constitui grave violação de direitos humanos, mas poderá ter outras consequências, tais como eventual extermínio dos doentes mentais", diz o texto.
Governo do Maranhão não fez nada
>> Em ÉPOCA
A responsabilidade pelo presídio e pela segurança dos detentos é do governo estadual, comandado pela governadora Roseana Sarney. Segundo o CNJ, o governo foi avisado dos casos de violação de direitos humanos nos presídios ainda em 2011, quando o conselho fez um mutirão nos processos penais no Estado. Em várias ocasiões entre 2011 e 2013, o conselho encaminhou recomendações e termos de ajustamento de conduta às autoridades estaduais, exigindo a construção de novos presídios no interior e a retomada do controle em Pedrinhas, todas elas sem obter resposta. A incapacidade do governo maranhense em lidar com o problema fez com que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acionasse um órgão internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A primeira reação do governo Roseana Sarney após a publicação do relatório do CNJ foi criticar o trabalho dos juízes. Em documento enviado à Procuradoria-Geral da União, o governo da Maranhão disse que o relatório estava repleto de "inverdades" que só atrapalhavam a atuação das autoridades. Na segunda-feira (6), no entanto, Roseana voltou atrás. Aceitou ajuda federal e concordou em transferir 25 presos para presídios federais. Roseana afirmou em pronunciamento: "Não fugirei à minha responsabilidade". E disse ser solidária as familiares da menina Ana Clara.
Os presos transferidos serão os líderes das facções, mas isso não deve aliviar o caos em Pedrinhas. Superlotada, a penitenciária tem um deficit de 500 vagas. O panorama geral do sistema prisional maranhense é ainda pior: com capacidade para abrigar 3.124 presos, precisa dar conta de uma população carcerária de 5.517 pessoas. Ou seja, há um deficit de 2.400 vagas em todo o Estado.
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