domingo, 12 de janeiro de 2014

QUE COMAM LAGOSTAS!!, por Ludmila Bello

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Séculos atrás, em outros mundos, existia uma cidade (imaginária, é claro) que se chamava Santa Luísa. Era uma ilha fantástica, com refrigerantes cor de rosa, camarões gigantes e um mar acinzentado que se perdia no infinito.
Lilliput teria inveja!
Passárgada e Xangri-la também.
Lá habitavam dois tipos de pessoas: as que comiam lagosta e as que não comiam lagosta. As primeiras, em franca minoria, viviam em torres de marfim muito altas, de onde só se podia ver o tal do mar acinzentado. As torres eram tão altas que os comedores de lagosta não conseguiam enxergar os não comedores, embora estes fossem numericamente superiores. Com o tempo, perderam-nos de vista. Distanciaram-se tanto que conseguiram esquecer das suas existências.
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Aqueles que não comiam lagosta foram renegados. Relegados aos bairros distantes do mar. Isolados. Privados de seus direitos à educação, saúde, moradia. Até comida faltava. Que alternativa tinham eles se a rainha da ilha só encomendava lagostas? Desumanizados, é o que eram.
Ao cruzar com um não comedor na rua, um comedor de lagosta apressava o passo. Fazia-se de cego para a situação de miséria em que se encontravam. Tornavam-se por instantes surdos para a realidade dura que lhes era relatada.
No meio de toda aquela pobreza, havia um lugar ainda pior. Ao cometerem crimes, os habitantes de segunda categoria eram enviados para um presídio chamado Pequenas Pedras.
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Pequenas Pedras era longe do mar e das torres de marfim. Tinha capacidade para 1700 presos, mas abrigava algo em torno de 2500. Lá, a dor se multiplicava. Tráfico. Celas superlotadas. Estupros coletivos. Chacinas. O que um dia foi criado para, segundo os penalistas mais românticos, reintegrar criminosos à sociedade, tornou-se uma trincheira de guerra entre facções criminosas rivais. Ainda assim, era solenemente ignorada pelos comedores de lagosta.
Um dia, a rebelião estourou dentro do presídio. O caos, o medo e a insegurança, antes restritos aos bairros de não comedores, passaram a atingir também as áreas nobres onde viviam os comedores de lagosta. Ônibus queimados, vídeos de decapitações na TV, assaltos e tiroteios próximos às torres de marfim.
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Logo, a cidade foi tomada pelo pânico.
“Quem é o culpado?” – perguntavam-se os comedores de lagosta. “A Policia, o Judiciário, os corruptos?”
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“São monstros! Esses criminosos são monstros” – diziam outros tantos.  “São criaturas que já nasceram más”.
O que os o comedores não enxergavam é que toda a sua sociedade tinha culpa. O Estado, suposto responsável, ignorou a condição de miséria de 90% de sua população, preocupando-se mais em maquiar seus níveis de desenvolvimento subsaarianos do que em garantir que os não comedores de lagosta tivessem seus direitos humanos respeitados. A lentidão e o atraso do Judiciário, bem como um sistema prisional desumano, fizeram do Complexo de Penitenciário de Pequenas Pedras uma escola criminosa, superlotada e degradante.
Culpa tinha toda a sociedade que, durante muito tempo, fechou os olhos para a desigualdade social estridente não só de Santa Luísa, mas de todo o estado Mavanense, onde ela se encontrava.
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A culpa não era dos comedores de lagosta. Era dos que fingiram que os não comedores de lagosta não existiam.
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Não, caro leitor. Os não comedores de lagosta que cometeram esses crimes atrozes não nasceram maus. Não foi assim tão simples. Foi preciso que uma sociedade inteira os desumanizasse.
Mas deixemos de devaneios. Afinal, esse texto trata apenas disso, de devaneios. No mundo real, nenhum governo, não importa quão alta seja sua torre de marfim, pede lagostas enquanto o seu povo passa fome.
Não é mesmo?
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