sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Josias de Souza - "Oligarquia Sarney revitalizou direitos humanos"


Blog do Josias de Souza

Não se chega aos primeiros lugares entre os Estados mais desiguais do país de um dia para o outro. No Maranhão, se você escolher um ano ao acaso para demarcar o começo do processo –digamos 1966, quando José Sarney tornou-se governador—os maranhenses levaram quase meio século para atingir alguns dos piores indicadores sociais. Ninguém prestava muita atenção. Mas nas últimas duas semanas os brasileiros redescobriram o Maranhão.
Registrado numa reportagem-documentário dirigida por Glauber Rocha (assista acima), o discurso inaugural de Sarney já realçava há 48 anos: “O Maranhão não quer a miséria, a fome, o analfabetismo, as mais altas taxas de mortalidade infantil, de tuberculose, de malária. O Maranhão não quer a violência como instrumento da política para banir direito dos mais sagrados que são os da pessoa humana…”
Desde então, o Maranhão não foi governado senão por Sarney e pelos políticos autorizados por ele. Chama-se Jackson Lago a única exceção. Durou pouco. Eleito em 2006, assumiu o governo em 2007. No início de 2009, o TSE passou-lhe o mandato na lâmina. Assumiu o segundo mais votado. Quem? Roseana Sarney. Quer dizer: na prática, o descalabro maranhense é um empreendimento 100% feito pela oligarquia Sarney.
Hoje, ainda sob Roseana, reeleita em 2010, o Maranhão é vice-campeão de analfabetismo e de mortalidade infantil. Exibe a pior renda per capita do país. Em matéria de IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano, está em penúltimo lugar, à frente apenas de Alagoas. Contra esse pano de fundo, a crise no sistema prisional maranhense é a maior contribuição dos Sarney ao Brasil.
As cenas de presos decapitados e esquartejados causaram um estrago irreversível na normalidade de um modelo político que escondia 50 anos de anormalidade e hipocrisia. Pelo excesso de descaso, os Sarney expuseram-se a si próprios. Só suicidas didáticos deixariam o melado escorrer a esse ponto. Só uma irresponsabilidade revolucionária poderia chegar a tal grau de auto-desconstrução.
É como se os Sarney tivessem planejado minuciosamente seus erros, cometendo-os em série. O recesso de final de ano transformou o noticiário num deserto. Súbito, os detentos de Pedrinhas (que nome para um complexo prisional!?!) saciaram a fome de manchetes. A velocidade da crise, cheia de efeitos especiais, içou o inferno das cadeias ao primeiro plano.
Introduziu-se no cenário uma novidade burlesca: os Sarney tornaram-se fator de progresso. Mudaram a agenda nacional, contra eles mesmos. Roseana caprichou. Desde 2010, vinha sendo alertada pelo Conselho Nacional de Justiça para a necessidade de resfriar a fervura de Pedrinhas. Deu de ombros. Em 2012, recebeu ofício do então presidente do STF e do CNJ, Carlos Ayres Britto.
No texto, o ministro sugeria à governadora a assinatura de um compromisso para a adoção de providências destinadas a desarmar a bomba-relógio dos presídios maranhenses. Ayres Britto aposentou-se em 2013 sem receber uma resposta de Roseana. Sobrevieram as explosões. Parecia suficiente. Mas José Sarney queria ir mais longe.
Em 24 de dezembro, véspera do Natal, quando Pedrinhas já tinha virado assunto nacional, o pai da goverandora falou a uma emissora de rádio da família. Declarou: “Aqui no Maranhão, nós conseguimos que a violência não saísse dos presídios para a rua.” Heimmm?!? Citanto o Estado do Espírito Santo, onde, por ordem dos presos, criminosos “tocaram fogo em ônibus, tocaram fogo na cidade, quebraram tudo”, Sarney celebrou: “Nós temos conseguido que aqui [no Maranhão] essa coisa não extrapole para a própria sociedade.”
Decorridos dez dias, o crime organizado de Pedrinhas cuidou de transformar Sarney numa oportunidade a ser aproveitada. Seguindo ordens emanadas do xadrez, criminosos atearam fogo em ônibus que circulavam pelas ruas de São Luís. Num desses veículos, atacado no bairro de Sarney Filho (quanta ironia!!!), o marginal conhecido como Porca Preta, 17, tocou fogo também em três seres humanos: Juliane Souza e suas duas filhas: Ana Clara, 6, e Lorane, 1. Por mal dos pecados, a menina Ana Clara morreu.
Habitantes de uma espécie de versão maranhense do Carandiru, os presos de Pedrinhas se deram conta de que só ganhariam existência se virassem notícia. E decidiram invadir a mídia nacional. Eles agora trabalham como figurantes no departamento do mal da TV Mirante, a emissora dos Sarney, que retransmite a programação da Rede Globo para os lares maranhenses.
Por meio do Jornal Nacional, a bandidagem de Pedrinhas informa que o Brasil, espécie de Maranhão hipertrofiado, virou um país que Nelson Rodrigues chamaria de óbvio permanente. Um país em que o sistema prisional é um diagnóstico exposto e incurável. As imagens do Maranhão compõem um trailer do Brasil. Quem assiste tem a sensação de estar no centro do insolúvel.
Os pelotões de Pedrinhas são a tampa final numa panela de pressão em que ferve a inépcia de décadas. Como que decidida a potencializar a irrealidade em que ainda vive o poder público, Roseana diz que o Maranhão “é um Estado que está se desenvolvendo, um Estado que está crescendo”. Segundo ela, “um dos problemas que está piorando a segurança é que o Estado está mais rico, mais populoso também.”
Supremo paradoxo: a falta de nexo da governadora agora é exposta na emissora da própria família. “De fato, é verdade: o Maranhão ficou mais rico”, noticiou o Jornal Nacional, retransmitido ao vivo pela TV Mirante. Entre 2010 e 2011, o PIB maranhense engordou 15,3%. Bem mais do que o crescimento do país no mesmo período: 2,7%. O diabo é que esse desempenho não melhorou a vida dos maranhenses pobres, ainda às voltas com alguns dos “piores índices sociais do país.”
Pelo acerto de seus erros, os Sarney dão lições de direitos humanos ao país. Vivo, Glauber Rocha talvez filmasse um novo documentário no Maranhão, uma continuidade do filme de 1966. Chamaria ‘São Luís em Transe’. Mostraria que o descaso, quando é muito, leva a uma combustão espontânea que convida o país a se reinventar. Se tiverem sensibilidade, os presidenciáveis de 2014 lançarão um olhar diferente para os presidiários. Num país em que não há pena de morte nem prisão perpétua, cedo ou tarde eles voltarão às ruas.

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