sexta-feira, 7 de junho de 2013

A METAMORFOSE DO PROGRAMA FOME ZERO



Franklin Douglas (*) 

O Programa Fome Zero, proposta de combate à fome que trazia consigo tanto a ação imediata (o dar de comer) quanto várias ações estruturantes de enfrentamento às causas da miséria, foi elaborado pelos mais renomados especialistas da temática da segurança alimentar e nutricional, além de diversas pessoas engajadas na luta contra a fome, como Dom Mauro Morelli, Zilda Arns, Frei Betto, Flávio Valente, José Graziano, dentre outros. Sustentava-se no pressuposto do "ensinar a pescar, não somente dar o peixe".
O "dar o peixe" concretizava-se por programas de transferência de renda. O "ensinar a pescar" pela reforma agrária, agricultura familiar e geração de empregos. Buscava combater o ciclo vicioso da pobreza (neoliberalismo+"exclusão social") com o ciclo virtuoso da segurança alimentar (desenvolvimento sustentável+"inclusão social"). O Programa Fome Zero foi inovador porque, pela primeira vez, articulou-se políticas de ação imediata com políticas estruturantes de longo prazo, tendo como base a participação popular, ainda que algumas de suas ações não fossem inéditas, a exemplo da transferência de renda.
Nesse aspecto específico, inéditos foram o Bolsa-Escola e o Poupança-Escola (Decreto nº 19.391/1998), do governo petista de Cristovam Buarque (1995-1999), em Brasília, e o Programa de Renda Mínima (lei nº 8.261/1995) da administração tucana de José Roberto Teixeira (1993-1996), na Prefeitura de Campinas. Ambos influenciaram a criação do Bolsa-Escola federal, no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 2001.
Mas sob o período FHC praticamente todas as principais reformas neoliberais foram aprovadas no Congresso Nacional, reconfigurando a tênue rede de proteção social brasileira. Mais uma resposta à pressão da questão social que cercava o governo do que uma estratégia para além das políticas compensatórias receitadas pelo Banco Mundial, dentre outros organismos internacionais. Assim, o Bolsa-Escola federal, o Vale-Gás, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), o Bolsa-Alimentação, dentre outros programas de transferência de renda implantados no governo FHC, não passaram de experiências focalizadas e restritivas pelos seus critérios de elegibilidade, fragmentadas, dispersas na estrutura do Estado e insuficiência de recursos financeiros, demonstram estudiosos das políticas de enfrentamento à pobreza como Maria Ozanira, Geraldo di Giovanni e Carmelita Yasbek. Na experiência de programas sociais dos anos 1990, prevaleceu o que Francisco de Oliveira denominou de verdadeiro “Estado de Mal-Estar Social” no Brasil.
Foi a resistência a esse cenário que possibilitou a criação do Fome Zero, programa fruto:
(1) da mais ampla campanha de solidariedade no combate à fome já mobilizada no Brasil, pela Ação da Cidadania de Betinho;
(2) do reforço à ação coletiva e articulada de movimentos diversos (Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar, organizações indígenas, quilombolas, catadores de lixo, Articulação do Semi-Árido, organizações de luta pela terra, organismo da Igreja Católica como Cáritas, CEB´s, Pastoral da Criança, etc.) na construção de uma proposta efetiva de combate à fome e à miséria, que referenciava o Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA) como espaço de participação;
(3) do resgate de reflexões como a de Josué de Castro, que concebia a fome como expressão de uma injusta divisão social, quando alertava que, enquanto metade da humanidade não comia, a outra metade não dormia, com medo da que não comia...
Foi essa a política de combate à fome que Lula recebeu da sociedade brasileira e que, em menos de um ano (janeiro a outubro de 2003), foi sufocada pela política da governabilidade conservadora de sustentação do governo no Congresso Nacional.
Incomodados pelos Comitês Populares (criados em janeiro de 2003 e compostos em 2/3 por lideranças populares ante 1/3 de representantes do poder público municipal) que revisavam a fundo o Cadastro Único, criado por FHC mas disperso em vários programas, os prefeitos pressionaram seus deputados federais que impuseram ao Governo Federal uma reviravolta ao Fome Zero:
a) de programa, virou "estratégia"...
b) de controle popular passou ao controle dos prefeitos, cujo cadastro para receber os cartões de transferência de renda tornou-se uma moeda eleitoral forte no ano seguinte (2004)...
c) de promessa de, em no máximo um ano e meio, retirar os beneficiários da situação de miséria, através de ações "porta de saída" (como o acesso à terra, apoio técnico agrícola para plantar e gerar alimentos, aumentando a produção destes e, consequentemente, diminuindo o preço da cesta básica), transformou esses beneficiários em dependentes do Bolsa Família - outro programa que política, organizacional e filosoficamente era totalmente distinto do Fome Zero.
Criado sob a coordenação da Casa Civil sob gestão de José Dirceu, o Programa Bolsa Família foi instituído pela Medida Provisória 132, de 20/10/2003, somente transformado em lei em 09 de janeiro de 2004 – Lei 10.386/2004. Os comitês populares de controle social foram esquecidos, as ações estruturantes abandonadas efetivamente e sua gestão deu-se sob um suposto pacto administrativo que, ao invés de revisar e tornar transparente o Cadastro de beneficiários, tornou-o uma caixa-preta acessível só aos prefeitos, o que não tardou em denúncias de gente que percebia o benefício sem dele precisar, a exemplo da recente revelação de vereadores que recebiam o Bolsa Família... 
Nesse contexto, de 2003 a 2010, o governo Lula, com sua política de governabilidade conservadora, implementou uma política de consolidação de um sistema de proteção social cujo carro-chefe foi o Programa de transferência de renda Bolsa-Família, que apenas tenuemente reduziu as desigualdades sociais no Brasil. Algo reconhecido pelos próprios intelectuais petistas, como André Singer, para quem, "o Brasil caminha para a frente, mas a passo tão lento que fica difícil distinguir se, nele, constrói o futuro ou eterniza o passado" (Folha de São Paulo, 09/02/2013, p. 02).
Enquanto se destina 14 bilhões de reais a 13 milhões de famílias alcançadas pelo Bolsa Família, 22 bilhões para a agricultura familiar, o agronegócio recebe 44 bilhões de reais (três vezes mais que o total destinado ao Programa Bolsa Família!) e o governo rola uma dívida superior a R$ 414 bilhões de reais, para a felicidade de banqueiros e rentistas.

Foi dessa forma que a política do "ensinar a pescar" foi para o beleléu... ficou o "gado" confinado pela cerca do latifúndio e o cartão do Bolsa Família que, a qualquer estouro, descontrola-se e sai a quebrar caixas eletrônicos e agências bancárias. Eis no que o governo do PT-PMDB transformou o Programa Fome Zero!

(*) Franklin Douglas - jornalista, professor e doutorando em Políticas Públicas (UFMA), escreve para o Jornal Pequeno aos domingos,  quinzenalmente. Artigo publicado no Jornal Pequeno  (edição 02/06/2013, p. 16)

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