Franklin Douglas (*)
O Programa Fome Zero, proposta de combate à fome que trazia consigo tanto
a ação imediata (o dar de comer) quanto várias ações estruturantes de
enfrentamento às causas da miséria, foi elaborado pelos mais renomados
especialistas da temática da segurança alimentar e nutricional, além de
diversas pessoas engajadas na luta contra a fome, como Dom Mauro Morelli, Zilda
Arns, Frei Betto, Flávio Valente, José Graziano, dentre outros. Sustentava-se
no pressuposto do "ensinar a pescar, não somente dar o peixe".
O "dar o peixe" concretizava-se por programas de
transferência de renda. O "ensinar a pescar" pela reforma agrária,
agricultura familiar e geração de empregos. Buscava combater o ciclo vicioso da
pobreza (neoliberalismo+"exclusão social") com o ciclo virtuoso da
segurança alimentar (desenvolvimento sustentável+"inclusão social").
O Programa Fome Zero foi inovador porque, pela primeira vez, articulou-se
políticas de ação imediata com políticas estruturantes de longo prazo, tendo
como base a participação popular, ainda que algumas de suas ações não fossem
inéditas, a exemplo da transferência de renda.
Nesse aspecto específico, inéditos foram o Bolsa-Escola e o
Poupança-Escola (Decreto nº 19.391/1998), do governo petista de Cristovam
Buarque (1995-1999), em Brasília, e o Programa de Renda Mínima (lei nº
8.261/1995) da administração tucana de José Roberto Teixeira (1993-1996), na
Prefeitura de Campinas. Ambos influenciaram a criação do Bolsa-Escola federal,
no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 2001.
Mas sob o período FHC praticamente todas as principais reformas
neoliberais foram aprovadas no Congresso Nacional, reconfigurando a tênue rede
de proteção social brasileira. Mais uma resposta à pressão da questão social
que cercava o governo do que uma estratégia para além das políticas
compensatórias receitadas pelo Banco Mundial, dentre outros organismos
internacionais. Assim, o Bolsa-Escola federal, o Vale-Gás, o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), o Bolsa-Alimentação, dentre outros
programas de transferência de renda implantados no governo FHC, não passaram de
experiências focalizadas e restritivas pelos seus critérios de elegibilidade,
fragmentadas, dispersas na estrutura do Estado e insuficiência de recursos
financeiros, demonstram estudiosos das políticas de enfrentamento à pobreza
como Maria Ozanira, Geraldo di Giovanni e Carmelita Yasbek. Na experiência de
programas sociais dos anos 1990, prevaleceu o que Francisco de Oliveira denominou
de verdadeiro “Estado de Mal-Estar Social” no Brasil.
Foi a resistência a esse cenário que possibilitou a criação do Fome
Zero, programa fruto:
(1) da mais ampla campanha de solidariedade no combate à fome já mobilizada
no Brasil, pela Ação da Cidadania de Betinho;
(2) do reforço à ação coletiva e articulada de movimentos diversos
(Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar, organizações indígenas, quilombolas,
catadores de lixo, Articulação do Semi-Árido, organizações de luta pela terra, organismo
da Igreja Católica como Cáritas, CEB´s, Pastoral da Criança, etc.) na
construção de uma proposta efetiva de combate à fome e à miséria, que
referenciava o Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA) como espaço de
participação;
(3) do resgate de reflexões como a de Josué de Castro, que concebia a
fome como expressão de uma injusta divisão social, quando alertava que,
enquanto metade da humanidade não comia, a outra metade não dormia, com medo da
que não comia...
Foi essa a política de combate à fome que Lula recebeu da sociedade
brasileira e que, em menos de um ano (janeiro a outubro de 2003), foi sufocada
pela política da governabilidade conservadora de sustentação do governo no
Congresso Nacional.
Incomodados pelos Comitês Populares (criados em janeiro de 2003 e compostos
em 2/3 por lideranças populares ante 1/3 de representantes do poder público
municipal) que revisavam a fundo o Cadastro Único, criado por FHC mas disperso
em vários programas, os prefeitos pressionaram seus deputados federais que
impuseram ao Governo Federal uma reviravolta ao Fome Zero:
a) de programa, virou "estratégia"...
b) de controle popular passou ao controle dos prefeitos, cujo cadastro
para receber os cartões de transferência de renda tornou-se uma moeda eleitoral
forte no ano seguinte (2004)...
c) de promessa de, em no máximo um ano e meio, retirar os beneficiários
da situação de miséria, através de ações "porta de saída" (como o
acesso à terra, apoio técnico agrícola para plantar e gerar alimentos,
aumentando a produção destes e, consequentemente, diminuindo o preço da cesta
básica), transformou esses beneficiários em dependentes do Bolsa Família -
outro programa que política, organizacional e filosoficamente era totalmente
distinto do Fome Zero.
Criado sob a coordenação da Casa Civil sob gestão de José Dirceu, o
Programa Bolsa Família foi instituído pela Medida Provisória 132, de
20/10/2003, somente transformado em lei em 09 de janeiro de 2004 – Lei
10.386/2004. Os comitês populares de controle social foram esquecidos, as ações
estruturantes abandonadas efetivamente e sua gestão deu-se sob um suposto pacto
administrativo que, ao invés de revisar e tornar transparente o Cadastro de
beneficiários, tornou-o uma caixa-preta acessível só aos prefeitos, o que não
tardou em denúncias de gente que percebia o benefício sem dele precisar, a
exemplo da recente revelação de vereadores que recebiam o Bolsa Família...
Nesse contexto, de 2003 a 2010, o governo Lula, com sua política de governabilidade
conservadora, implementou uma política de consolidação de um sistema de
proteção social cujo carro-chefe foi o Programa de transferência de renda
Bolsa-Família, que apenas tenuemente reduziu as desigualdades sociais no Brasil.
Algo reconhecido pelos próprios intelectuais petistas, como André Singer, para
quem, "o Brasil caminha para a
frente, mas a passo tão lento que fica difícil distinguir se, nele, constrói o
futuro ou eterniza o passado" (Folha de São Paulo, 09/02/2013, p. 02).
Enquanto se destina 14 bilhões de reais a 13 milhões de famílias
alcançadas pelo Bolsa Família, 22 bilhões para a agricultura familiar, o
agronegócio recebe 44 bilhões de reais (três vezes mais que o total destinado
ao Programa Bolsa Família!) e o governo rola uma dívida superior a R$ 414
bilhões de reais, para a felicidade de banqueiros e rentistas.
Foi dessa forma que a política do "ensinar a pescar" foi para
o beleléu... ficou o "gado" confinado pela cerca do latifúndio e o
cartão do Bolsa Família que, a qualquer estouro, descontrola-se e sai a quebrar
caixas eletrônicos e agências bancárias. Eis no que o governo do PT-PMDB
transformou o Programa Fome Zero!
(*) Franklin Douglas - jornalista, professor e doutorando em Políticas Públicas (UFMA), escreve para o Jornal Pequeno aos domingos, quinzenalmente. Artigo publicado no Jornal Pequeno (edição 02/06/2013, p. 16)
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